Tropas especiais acima da lei ameaçam democracia

Tropas especiais acima da lei ameaçam democracia

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Por Henrique Acker*  –  redacao@negrxs50mais.com.br

Quando se fala em tropas especiais de combate, treinadas para o confronto armado, as mais lembradas e temidas no Brasil são os Kids Pretos, do Exército, o Batalhão de Operações Especiais (PM) e a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil.

Ao contrário de serem extintas com o fim da ditadura militar e o retorno à democracia, ganharam prestígio e transformaram-se numa ameaça viva à legalidade democrática. Seu emprego vem se generalizando em todo o país, tendo como espelho o Rio de Janeiro.

Semelhantes às Forças Especiais do Exército (Kids Pretos), Bope e Core, formam a elite da PM e da Polícia Civil. Os dois destacamentos guardam entre si um propósito e uma ideologia comuns, que evidenciam seus objetivos. Não por acaso, suas ações estão entre as mais letais já registradas na sociedade brasileira no século XXI.

Matança sem fim

Core e Bope surgiram durante a ditadura militar, com o propósito de combater o “inimigo interno”, em consonância com a Lei de Segurança Nacional. Tinham como propósito enfrentar os adversários do regime militar, ou seja, aqueles que lutaram pelo retorno da democracia no Brasil.

A brutalidade empregada por esses grupamentos financiados com dinheiro público pode ser medida pelo estrago que provocam em suas operações. Bope e Core colecionam episódios que redundaram em matanças, sempre em comunidades mais pobres das grandes cidades, como no Jacarezinho (2021) e, recentemente, nos complexos do Alemão e da Penha.

Tropas especiais - Kids pretos - Exército
Kids Pretos –Foto: divulgação Exército

Com o fim da ditadura, Bope e Core vêm sendo empregados contra grupos de criminosos comuns, justificativa para manter essas forças mesmo sob o regime democrático. O empenho de recursos dos orçamentos estaduais para fortalecer tropas de combate é bem maior do que o que se investe em aparelhamento técnico e investigação na segurança pública.

Muita polícia, pouca inteligência

Um dos estados mais conflagrados do país e com grande parte de seu território dominado por grupos de traficantes e milicianos, o Rio de Janeiro é dos que menos investe nas áreas de informação e inteligência no setor de segurança pública. Em 2024, o governo do Rio aplicou R$ 15,4 milhões nessa área.

Ainda assim, a Polícia Técnico-Científica do Rio não recebeu nenhum investimento em 2024, diz o estudo “Funil de Investimentos da Segurança Pública e do Sistema Prisional” do Centro de Pesquisa Justa.

No entanto, o Rio continua entre os estados que mais gastam (10,3%), proporcionalmente, com polícias dentro do seu orçamento – R$ 10,3 bilhões de um total R$ 100,5 bilhões, em 2024. Esse valor representa a soma de todos os gastos estaduais com educação, saneamento básico, energia e trabalho.

Do Araguaia à tentativa de golpe em 2023

“Kids Pretos” é o apelido das Forças Especiais do Exército brasileiro, com cerca de 2.500 homens e inspirada no modelo dos comandos britânicos da II Guerra. São geralmente usados em missões de espionagem, infiltração e sabotagem. Ganharam prestígio na administração Bolsonaro, quando 26 de seus integrantes tiveram participação direta no governo.

A operação de batismo dos Kids Pretos foi no combate à guerrilha do Araguaia, no Centro-Oeste, no ano de 1974, durante a ditadura militar. Dali resultaram oficialmente 41 guerrilheiros mortos, inúmeros desaparecidos e muitos militantes e camponeses ameaçados, presos e torturados. Entre os mortos, muitos foram detidos, torturados e enterrados na região. Suas ossadas sequer foram recuperadas até hoje.

Apesar do fim da ditadura, o “combate contra a subversão” continuou a ser estudado nos comandos, forças especiais e precursores paraquedistas e permanece como um dos aspectos fundamentais da doutrina das Forças Especiais.

Em 2020, a Operação Mantiqueira, exercício de operações especiais contra uma suposta “organização armada clandestina”, referia-se a organizações de esquerda em seu cenário fictício, apesar do Exército ter negado a conotação político-ideológica daquela simulação.

Em 2022, ao final do governo Bolsonaro, foram identificados vários Kids Pretos nos acampamentos golpistas em frente aos quartéis do Exército e nas operações de sabotagem durante os atos violentos próximos à sede da PF. Alguns deles estiveram na articulação da invasão das sedes dos Três Poderes na tentativa de golpe, em 8 de janeiro, em Brasília.

Permissão para torturar e matar

O Bope foi fundado por ex-oficiais do Exército que já atuavam na repressão a grupos de oposição ao regime militar durante os anos de chumbo da ditadura e depois migraram para a PM do Rio. Paulo Cezar Amêndola era o nome de maior destaque quando da fundação do batalhão.

Os cânticos de treino denunciam a vocação autoritária do Bope. O filme Tropa de Elite mostrou em detalhes o processo de formação dos “caveiras”, incluindo técnicas de intimidação e tortura aplicadas aos “inimigos”.

Amêndola, que mais tarde veio a ser o primeiro superintendente da Guarda Civil Metropolitana do Rio, é apontado pelo Grupo Tortura Nunca Mais como torturador de presos políticos durante a ditadura militar.

Na recente operação nos complexos da Penha e do Alemão, familiares de mortos encontrados na mata no alto da comunidade denunciaram que os corpos tinham balas na nuca, perfurações por faca e muitos estavam mutilados. Ali não houve saída sequer para os que se renderam. Os mortos foram assassinados com requintes de crueldade.

Sob o lema do combate ao “terrorismo”

Tropas especiais - Core- risco à democracia
Core – Foto – Instagram Core

A Core nasceu em 1969 do Grupo de Operações Especiais (GOE), formado pela Secretaria de Segurança Pública do antigo estado da Guanabara. A iniciativa partiu da necessidade de ter uma unidade policial de elite para lidar com a crescente “ameaça do terrorismo” e do crime organizado no país durante a ditadura.

Há quem diga que a Core foi inspirada na antiga Polícia Especial dos tempos do Estado Novo, que reunia, além de policiais conhecidos por sua postura violenta, atletas de diversas modalidades esportivas.

O inspetor de polícia José Paulo Boneschi é considerado o idealizador da unidade, também acusado por ex-presos políticos de ser torturador. Mais tarde, Boneschi e Amêndola foram precursores de empresas de segurança privada no Brasil, recrutando ex-colegas dos tempos da ditadura, soldados e policiais.

Vale-tudo ou a Lei?

Esses três destacamentos são treinados segundo o princípio de que sua tropa pode tudo, está acima da lei, não tem limites e nem se submete à Constituição. Formam espécies de comandos de justiceiros, que estariam supostamente defendendo a sociedade.

Ocorre que a violência do Estado tem limites, ainda mais por ser exercida por servidores públicos que deveriam cumprir e estar subordinados às leis.

As práticas de intimidação, espancamento, confissão sob tortura, conspiração contra a ordem vigente, mutilação e assassinato são próprias dos que estão à margem do Estado Democrático de Direito, ou seja, dos que usam da violência para se impor e praticar crimes.

Até quando?

Agentes da lei servem para combater a criminalidade, não para cometer crimes. Fardado ou não, quem comete crime e atenta contra a lei é criminoso. A barbárie e o “vale-tudo” não podem ser os princípios da formação e da prática dos agentes da lei, sustentados por impostos pagos pela população, com a função de defender a sociedade.

A legislação brasileira sobre o uso de armas de fogo por policiais é clara e regulamentada principalmente pela Lei nº 13.060/2014 e pelo decreto nº 12.341/2024. O uso da arma de fogo é permitido apenas quando outras medidas se mostram insuficientes para garantir a segurança do policial ou de terceiros.

Não há na legislação qualquer permissão para matar, a não ser em legítima defesa. Ou seja, disparar à queima-roupa ou usar armas brancas contra alguém que esteja rendido é equivalente a assassinato, ainda que a vítima seja um fora da lei procurado pela Justiça. 

*Henrique Acker (jornalista e colunista), com informações de Anuário Estatístico de Segurança Pública 2025, UOL Notícias, Agência Brasil, Funil de Investimentos da Segurança Pública e do Sistema Prisional, Jornal de Brasília. Publicado originalmente no Opinião em Pauta

Imagem em destaque: Divulgação Exército

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