Um olhar sobre a 2ª Marcha das Mulheres Negras

Um olhar sobre a 2ª Marcha das Mulheres Negras

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Sandra Martins - marcha mulheres negras Por Sandra Martins (*) – redacao@negrxs50mais.com.br

No dia 25 de novembro, em uma terça-feira bela e ensolarada, juntei-me às quase 300 mil pessoas na 2ª Marcha das Mulheres Negras – por Reparação e Bem Viver – em Brasília. Foi revigorante presenciar a transformação da Esplanada dos Ministérios em um palco de reivindicações e celebrações da identidade afro-brasileira. Um momento histórico que nos reconecta com a força ancestral e a união de mobilizações por todo o Brasil em prol da igualdade étnico-racial e de gênero e pela Reparação Histórica como um direito inalienável. Parabéns ao trabalho hercúleo dos Comitês Impulsores: Nacional, Estaduais, Municipais, Regionais e o Internacional.

Como aprendemos que o progresso não exige a ruptura com o passado, mas sim um equilíbrio dinâmico, confesso que naqueles momentos pensei em minha avó Dona Marita. Desde cedo, ela aprendeu que não precisava se submeter ao patriarcado para viver e cuidar de sua vida, de suas filhas, de suas vizinhas. Era uma matriarca afro-indígena da área da saúde que acolhia as amigas. Orientava sobre a importância de constituírem redes de apoio e associações de moradores – criou duas na Zona Oeste carioca. Na Marcha, vi milhares de Maritas de todas as regiões do país e de cerca de 40 nações, exigindo respeito aos direitos e visibilidade para a população negra no Brasil.

O percurso do Rio de Janeiro à Brasília foi longo, 18 horas de ônibus. O cansaço foi amenizado pela animação das companheiras de viagem. Deu até para fazer um pouco de alongamento no corredor, minha coluna agradeceu muito (risos).

Mulheres Negras Decidem

Em Brasília, as caravanas eram saudadas por uma boneca inflável de uma mulher negra, com cerca de 14 metros. Ela trazia uma faixa presidencial onde se lia “Mulheres Negras Decidem”, simbolizando que não temos que ficar no final da fila, aguardando sermos chamadas para entrar na varanda da Casa Grande.

O cenário era realmente muito bonito, colorido, animado, sotaques diversos, feiras de empreendedoras, performances, trios elétricos, palavras de ordem, homenagens. As empreendedoras tiveram espaço para expor suas produções, que iam do artesanato, vestuário, alimentos, enfim… Encontrei muitas amigas brasileiras, fiz muitas outras e aprendi. E outra coisa, que entendo ser importante: a conversa olho no olho, a troca de afetos e de gracejos, sem a mediação de redes sociais.

Na primeira Marcha em 2015, não tive possibilidades de estar na capital federal, mas participei da mobilização do Comitê de Niterói. E, lembro que em uma das rodas de conversa, tivemos a presença tímida de algumas mulheres negras evangélicas. E, dez anos depois, vi, com muita alegria, delegações evangélicas pentecostais orgulhosamente portando faixas ao lado de mulheres de outros credos e etnias.

Projeto político fundamentado na Reparação e no Bem Viver

As delegações, nacionais e estrangeiras, levavam faixas, cartazes e bandeiras, de todos os tipos e tamanhos, pontuando demandas seculares e denúncias das violências do Estado e cobrando políticas públicas que garantam os direitos da população, conforme prevê a Constituição Federal de 1988. Dores que nos afligem cotidianamente foram nominadas, como: o feminicídio, o genocídio da população negra jovem, a lgbtqifobia, o racismo ambiental, a discriminação religiosa, o descaso com a educação e a saúde. Além da exigência de um projeto político fundamentado na Reparação e no Bem Viver. Espero que o patriarcado masculino, branco, cis e católico ou pentecostal, lembre-se que nosso voto e corpo tem memória.

Para o encerramento, uma programação cultural bem interessante, que nos ajudou a relaxar, brincar, dançar, nos abraçarmos e nos despedirmos da ambiência entre irmãs e irmãos de luta.

Nem tudo foi festa, ocorreram cenas de filmes gastos e rotos de tanto reprisados

Antes de finalizar minhas impressões positivas deste encontrão a céu aberto, não posso deixar de comentar do que não gostei. Situações que me pareciam ser cenas de filmes gastos, rotos de tanto que são reprisados. Logo no início de minha caminhada, presenciei a agressividade de um funcionário, que dera ordens expressas de seus comandados de não deixarem as mulheres usarem as instalações sanitárias daquele equipamento do governo, talvez um teatro ou algo do gênero. Indignadas pelo tratamento hostil, as mulheres perguntavam qual a razão da proibição. Como resposta, o sujeito branco só gritava: “o banheiro de vocês é lá!”, indicando a área dos banheiros químicos. Foi patético, para não dizer horrendo, ver como ordenava às/aos seguranças – visivelmente constrangidos – que impedissem a passagem das senhoras e crianças.

Outra questão que vivenciei foi a tal área dos banheiros químicos. Duas fileiras dos módulos sanitários colocados em um local de terra batida. O que significa dizer que após horas de uso, a área ficou absolutamente insalubre. Os gênios poderiam ter, no mínimo, posto tábuas intervaladas sobre areia que deveria cobrir toda a área, de forma que não houvesse contato com os excrementos líquidos.

Por letramento étnico racial do Estado brasileiro de fio a pavio

Não quero ser exigente, mas tenho que ser, afinal, afinal – ainda – estamos lutando pelo 14 de maio de 1888. Com certeza podemos afirmar que é o racismo estrutural, que pega do primeiro ao último escalão da cadeia produtiva. Entretanto, entendo que já passou da hora de nomearmos como “racismo estrutural” sem que efetivamente sejam tomadas atitudes concretas para evitar o jogo de empurra.

Uma ação prática e objetiva deveria ser a obrigatoriedade do letramento étnico racial continuado em toda a cadeia produtiva do Estado brasileiro, de fio a pavio, do Presidente da República, dos ministros de tribunais superiores, dos/as candidatos/as à cargos eletivos, enfim a todos os operadores de direito até o manobrista das empresas públicas. É o mínimo! E nada nos impedirá de continuar marchando, questionando, cobrando responsabilidades do Estado brasileiro para com seu povo!

(*) Sandra Martins é jornalista, mestra em História Comparada/UFRJ e biógrafa. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira/SJPMRJ) e a Diretoria de Igualdade Étnico-Racial/ABI.

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