Vozes negras devem indicar caminhos para humanidade
Por Ivan Accioly – ivan-accioly@negrxs50mais.com.br
A reação ao assassinato de George Floyd é um marco no movimento antirracista de todo o mundo. Foram quase nove minutos de sufocamento, agonia, pedido pela vida e uma sentença de morte executada no asfalto. Na frente de testemunhas e sob o aviso da vítima de que morreria. Foi uma voz negra pedindo socorro e que agora se faz audível o suficiente a indicar caminhos para a humanidade.
O poder necropolítico do qual o policial Derek Chauvin estava investido, no entanto, não o deixava ter dúvidas quanto ao que fazer. Ao contrário, tinha certezas. Certeza da impunidade, certeza de sua onipotência; do seu direito de subjugar. Certezas arraigadas, consolidadas, herdeira de séculos de racismo.
Laudatória de um poder que se autoconsidera incontestável e válido para todo o planeta. Que se julga detentor de uma supremacia e se coloca no topo da cadeia das relações humanas. Em contraposição, a vítima – negra – representa a base. Aquele sobre o qual todos valem mais.
É assim lá nos EUA e é assim aqui no Brasil, onde os negros têm que brigar a cada instante para não sucumbirem ao peso do chamado racismo estrutural.
Vidas reguladas, dominadas e acuadas
Situação de luta e resistência permanentes que se arrastam pelos séculos, desde quando passaram a ser arrancados da África e trazidos para escravização nas américas. São vidas que desde então jamais puderam ser inteiras, plenas. Que são tolhidas, reguladas, dominadas, submetidas a leis e regras, escritas ou não, a vontades e que se sentem acuadas. Que precisam ficar em permanente estado de alerta. Que parecem sempre estar fora do lugar e que podem, a qualquer momento, ser interpeladas e/ou interrompidas. Que não podem relaxar.
Que, mesmo estando em casa e se sentindo protegidas, podem ser atacadas, violentadas, assassinadas, como foi o caso do adolescente João Pedro, 14 anos de idade, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Ou o de Pedro Gonzaga, 19 anos, asfixiado, como George Floyd, no chão de um supermercado na Barra da Tijuca; ou de João Vitor da Rocha, 18 anos, morto na Cidade de Deus, ou de Rodrigo Cerqueira, 19 anos, morto no Morro da Providência ou de Matheus Oliveira, 23 anos, assassinado no Morro do Borel, na Tijuca.
A lista não cabe aqui, mas está gravada na ignomínia desse país assassino. Apenas no estado do Rio de Janeiro as polícias mataram 606 pessoas nos primeiros quatro meses de 2020. Desses, 290 em março e abril, durante o isolamento social. Foram 43% a mais do que no mesmo período do ano passado, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP) do governo estadual.
Acertar a cabecinha e recorde de assassinatos
Vale destacar que esse extermínio da população negra é o padrão da sociedade brasileira. Em 2019 – primeiro ano do governo cujo titular Wilson Witzel deu como senha “acertar a cabecinha”, houve recorde de assassinatos por policiais. Foram 1.810, 18% superior ao ano de 2018. Entre mortos, 99% eram homens e 78% tinham idades entre 15 e 29 anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.
Esses números não são apenas estatísticas, mesmo num país que não respeita a vida e age com normalidade frente a governos que brincam com os mais de 32 mil mortos durante a pandemia do Covid 19. São vidas interrompidas e que, mesmo mortas, continuam falando.
Elas dizem para as outras 56% da população brasileira que são negras onde ficar, como se comportar, como se enquadrar para tentar escapar de ser mais uma entre esses números.
O corpo negro, por si, é um manifesto
Por isso são despropositadas as comparações e cobranças que regularmente se tenta fazer entre as reações ao assassinato de George Floyd (foto) e o que seria uma “passividade” dos negros brasileiros frente aos assassinatos que aqui ocorrem numa velocidade em que os nomes dos assassinados saem dos noticiários e seus casos caem no esquecimento menos do que semanalmente.
A realidade é mais complexa. A adesão e empatia à revolta negra com os assassinatos que aqui ocorrem vai até a página um. A verdade é que a sociedade não se indigna. Os protestos são restritos aos familiares e alguns poucos movimentos organizados, que assumem os riscos inerentes ao que seus corpos significam.
Esse é um diferencial básico. O corpo negro, por si, é um manifesto e em protesto é um alvo fácil de ser agredido. Os protestos a cada assassinato são tratados como atos criminosos. Os veículos de comunicação destacam o trânsito interrompido, os supostos transtornos para a cidade e possíveis prejuízos aos “cidadãos de bem” provocados pelos que seriam baderneiros.
Esse corpo negro é uma espécie de ameaça à coletividade. Não encontra solidariedade, desperta medo. Medo contra o qual só há uma linguagem de reação, mais violência contra ele. Uma violência que é aceita com tranquilidade pela sociedade que busca sua pretensa segurança e tranquilidade e fecha os olhos para como se alcança esse estado.
Não há paraíso na diáspora negra
Mesmo quando há protesto articulados com a adesão de parcelas mais amplas, como o “Parem de nos matar” em espaços não periféricos, como a Avenida Atlântica, quem se sente à vontade a participar é uma parcela ínfima de negros. Aqueles que sabem dos riscos pela cor da pele, mas que por diferentes processos têm consciência de que esse risco pode ajudar no avanço antirracista. Mas não chegam nem a ser protestos, são atos públicos.
Então, a preservação da própria integridade física e da vida é um motivo para invalidar essas comparações. No estado de Minnesota, onde ocorreu o assassinato de Floyd, durante o ano 2019 a polícia matou onze pessoas. Aqui no Rio, como já disse, foram 1.810, ou 31% das 5.804 mortes ocorridas no Brasil.
Manifestação “Parem de nos matar” na Avenida Atlântica – Rio de Janeiro -2019 Foto: Ivan Accioly
Isso não significa que lá seja o paraíso. Não é. As chances de um negro ser vítima da polícia dos EUA são 2,5 vezes superiores às de um branco, segundo o jornal The Guardian. Lá os negros são 12% da população, mas 40% dos encarcerados. Não à toa os protestos antirracistas deflagrados nos EUA tomam diversos países pelo mundo. Com destaque para a França, Holanda, Canadá, Reino Unido e Alemanha.
A diáspora africana iniciada à força e que segue no rastro da fuga da miséria e das disputas políticas, reconfigura, aos poucos, a demografia mundial e inclui os negros em diversas sociedades antes exclusivamente brancas. No entanto, o racismo também se renova. Agora, como diz Achille Mbembe, sob novas roupagens, como a da questão religiosa e contra o islamismo.
Nós negros temos que falar, protestar e seguir na luta. O Brasil vê atônito a extrema direita ocupar as ruas. Vê grupelhos de meia dúzia (pelo menos por enquanto) marcharem com máscaras e tochas a la Ku Klux Klan, vê ministro enaltecer métodos e frases nazistas; vê um boçal negro menosprezar e negar toda a história dos negros no país. É necessário dizer não a esse quadro.
É preciso ser antirracista
Se o capitalismo se estruturou às custas das vidas negras e se sustenta na desigualdade, é hora de entendermos nosso papel e não deixarmos mais que o sangue que é extraído de nossos corpos se perca. Não somos números, não somos dados para estatística. Temos voz e temos que dizer para onde essa humanidade deve seguir.
O rosto de George Floyd esmagado sob o joelho do policial racista, o corpo sequestrado de João Pedro, o corpo de Claudia Silva Ferreira arrastado pelas ruas da Zona Norte carioca, têm que ser mais do que a carne negra “mais barata do mercado”, como reverbera Elza Soares. Têm que ser marcos de indignações que façam com que negros e não negros se posicionem e briguem por uma nova convivência entre os humanos. Lembrando sempre que como diz Angela Davis: “em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista“.
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Imagem de abertura: manifestação “Parem de Nos Matar” – Copacabana 2019 Foto: Ivan Accioly