No Brasil, é comum cor da pele batizar artistas negros

No Brasil, é comum cor da pele batizar artistas negros

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Lucio-Valentim-artigo- Por Lucio Valentim*

Na cultura brasileira, mais especificamente na música popular, tornou-se comum a referência a artistas negros por meio de sua especificidade étnica. Isto é, de sua cor. Desta maneira, proliferam nos medias, hoje, de Nego do Borel a Pretinho da Serrinha; de Negra Li a BNegão.

Há, inclusive, os já clássicos: Neguinho da Beija-Flor, Só preto sem preconceito, Raça negra e Negritude Júnior. Com respingos em Mano Brown, Carlinhos Brown, e n’A marrom. Concorrendo por fora, há ainda o estilizado Criolo.

Ora, em nossa cultura de massas, tal prática nem configura propriamente uma novidade. Quem tem pouco mais de cinquenta anos há de se lembrar de Noite ilustrada e Blecaute, cantores do rádio e da TV. Ambos negros. É claro.

Onde estão a Loira do Leblon, o Branquitude Jr. e o PRuivão?

Sabe-se, entretanto, que fama e talento nem sempre caminham juntos. Mas não é o que aqui se pretende questionar. E muito menos ofuscar o sucesso alheio. Porém, duas questões se impõem:

a) Para o indivíduo negro, frequentemente egresso de periferias urbanas, a ênfase na etnia, ao contrário do efeito autoafirmativo que contém, não o circunscreveria também socialmente a sua condição de cor e de origem? E, portanto, de classe? Haverá, de fato, interesses mútuos nessa forma de identificação e inserção sociais?

b) E se os há, onde nas mídias de massa – pregressas ou recentes – encontram-se analogias contrárias, mas de mesmo efeito “afirmativo”, nais quais proliferassem identidades artísticas do tipo Loira do Leblon, Branquitude Jr. ou PRuivão?

A reiteração dos estereótipos

Faz pelo menos um século que o showbizz norte-americano – de onde provém parte de nosso imaginário cultural pop – vem se regozijando dos variados clichês raciais (gestos, gírias, roupas). Quer seja a título de autoafirmação, ou não, o artista negro, nestes casos exposto, parece reviver a “síndrome da mulher de César”: não basta ser, mas tem que parecer negro.

E assim, sub-repticiamente, se vão reiterando certos estereótipos.

Lembro aqui o “caso” Cruz e Sousa.

Na literatura, arte que escapa à cultura de massas, o Brasil produziu poucos consagrados autores considerados negros. Digo “considerados”, porque, como vivemos numa sociedade onde vigorou um dia a tese da miscigenação como fator de “branqueamento”, criou-se uma escala dégradée entre o branco e o negro. Dela constando o mulato, o quase branco, o pardo, o quase preto etc.

Machado de Assis, branqueamento que convinha à inclusão

Machado de Assis- Bruxo-do Cosme-Velho
Machado de Assis – Foto: Caras y Caretas-
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España.

E é justamente por não “parecer” negro – posto que filho da mistura de raças –, que Machado de Assis vem escapando ao longo dos séculos de ser enquadrado, definitivamente, como “autor brasileiro negro”. Vagando para sempre no limbo étnico da mulatice.

Claro: se o saber, a ilustração, e a riqueza, no imaginário coletivo das classes, estiveram sempre vinculados a certa visão eurocêntrica do mundo, e, por isso mesmo, excludente de etnias, o “branqueamento” de Machado convinha ao seu processo de inclusão. Embora isto só venha a confirmar nossa histórica esquizofrenia daltônica. E de classes.

João da Cruz e Sousa, o Cisne Negro

Em contrapartida, Cruz e Sousa – negro de pai e mãe – não teve escapatória.

Cruz e Souza-Simbolismo-Cisne Negro
Cruz e Souza

Preto retinto, e nascido no Sul do país, João da Cruz e Sousa foi, sem dúvida, um dos maiores intelectuais brasileiros de seu tempo, e reconhecidamente a maior expressão do Simbolismo. Contudo, a despeito – ou por causa – de sua elegância e farta cultura, a homenagem expressa em seu epíteto – Cisne Negro – não se furtaria ao tal “ato identitário”, circunscrevendo  aquele que poderia, simplesmente, ter sido o príncipe do Simbolismo, uma vez mais, à cor de sua pele: cisne, majestoso, inteligente, superior. Mas, negro.

É nesse resvalo de nossa história racial que a mulatice de Machado de Assis lhe foi favorável.

Não fosse assim – somando-se a cor à sua natureza introspectiva e reclusa –, e talvez o Bruxo tivesse entrado para a posteridade como o Preto do Cosme Velho.

*Lucio Valentim é doutor e mestre em Letras pela UFRJ. Especialista em literatura brasileira e professor titular da Universidade Estácio de Sá.

Imagens: Pretinho da Serrinha, Negra Li, Neguinho da Beija-Flor, Carlinhos Brown, Criolo, B Negão, Mano Brown, Nego do Borel e Negritude – Fotos: perfis no Instagram // Noite Ilustrada, Blecaute e Raça Negra – Fotos reproduções Internet –

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