O feminino em fluxo nas mulheres negras
Por Angélica Basthi*
Celebrar a existência das mulheres negras ainda causa estranhamento. Em parte, isso ocorre porque são raras as reflexões sobre o feminino pulsante em cada mulher negra (cis, trans, bi e outros gêneros[i]). E são igualmente raras as reflexões sobre suas singularidades. A tendência é negar a pluralidade dos modos de ser e se expressar das mulheres negras. Por muito tempo, ouviu-se apenas a voz da negação da “natureza feminina das mulheres negras” – expressão já cunhada pela escritora afro-americana, bel hooks. Nesta reflexão, entenda “natureza feminina” como referência ao gênero feminino (e pulsante), e não ao biológico.
Tanto a negação da profundidade humana quanto as classificações estereotipadas e degradantes sobre o corpo das mulheres negras e seus modos de agir, pensar e se expressar no mundo ocultaram a potência, a beleza e a sabedoria do feminino inerente às mulheres negras – e que também pulsam em todas as mulheres que habitam o planeta.
Quando as mulheres – negras e não-negras – estão desconectadas deste saber ancestral feminino predominam o medo, a vergonha, a baixa autoestima, a solidão, a impotência, entre outras situações de perda da conexão com o feminino em fluxo.
Forças da natureza são principais fontes do saber ancestral
Feminino em fluxo são as energias disponíveis do feminino, em sintonia com os fluxos do tempo, num ciclo contínuo e em movimento que impulsiona a formação de uma nova visão de mundo. A principal fonte deste saber ancestral são as forças da Natureza, que habitam dentro e fora do ser humano, e que são geradoras de vida e de potência.
No entanto, o feminino em fluxo é forjado no cotidiano, onde germinam as singularidades humanas. É no cotidiano onde brotam a sabedoria da tecelã, da guerreira e da anciã que tecem os filamentos para a construção de um mundo unificado e igualitário. O cotidiano é também o território da conexão com os valores da vida em comunidade e da ancestralidade. Honrar os fluxos do feminino promove o alinhamento com o prazer e a alegria e conecta com as inteligências do semear e frutificar. O mundo contemporâneo tem girado num outro sentido e cultuado ideias, práticas e valores que nos distanciam desse conhecimento.
No caso das mulheres negras (repito: cis, trans, bi e outros gêneros), o uso sistemático de estereótipos negativos e positivos contra a população negra ao longo da história contribuiu para a desvalorização da sua “natureza feminina”. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi explorada a ideia de que as mulheres negras eram praticantes do sexo selvagem, na tentativa de ressaltar uma associação com os animais – não na concepção sagrada – e sim, para justificar o tratamento cruel e perverso de sociedades estruturadas na escravização do corpo negro e na desumanização das pessoas negras ao redor do planeta.
Racismo e sexismo vinculados à perda da natureza feminina negra
Para hooks, a perda do valor da “natureza feminina” negra está vinculada ao modo racista e sexista de reproduzir e, simultaneamente, ignorar as violações sofridas pelas mulheres negras ao longo do período de escravização.
A hiperssexualização do corpo das mulheres negras tem caminhado de mãos dadas com a dissociação das mulheres negras como merecedoras de amor e afeto. Junto a isso, as imagens das mulheres negras como mal-amadas, sofredoras (e conformadas) ou raivosas (e histéricas) ou mal-educadas (e agressivas) ou até mesmo os estereótipos positivos como “fortes” e “guerreiras” (no sentido de aguentarem dores extremas) têm sido usadas como justificativa para a dominação e exploração política e sexual.
Ainda hoje persistem as narrativas que reproduzem os estereótipos racistas e sexistas que visam negar ou reduzir o feminino em fluxo nas mulheres negras. Desumanização, violência e estereótipos continuam sendo sistematicamente reproduzidos nas práticas cotidianas no âmbito das famílias, escolas, empresas e outros setores da vida social e institucional.
Cegueira coletiva impede sociedade brasileira de vislumbrar feminino pulsantes das negras
No jogo desta perversidade racial e de dominação sexista, perdeu-se a capacidade de enxergar a real “natureza feminina” das mulheres negras. Esta cegueira coletiva tem impedido a sociedade brasileira vislumbrar um feminino pulsante das mulheres negras que tem estado vivo e presente ao longo do processo de construção histórica.
A resposta que vem sendo dada pelas mulheres negras faz com que elas ocupem um lugar singular no contexto das relações sociais. Com a bandeira do bem viver em punho – conceito que se tornou conhecido após a Marcha das Mulheres Negras em 2015 e que inclui o direito à vida, à saúde, ao trabalho, à cultura, ao axé e em defesa da família, entre outros – essas mulheres têm sido guardiãs de um legado de beleza, amor, potência e da mais genuína coragem feminina. Esse legado vem sendo repassado de geração a geração.
Na outra ponta das práticas racistas, sexistas e tentativas perversas de redução, anulação ou extermínio da sua “natureza feminina”, as mulheres negras forjam dentro si um feminino em fluxo que transborda forças femininas como o vigor, a nutrição, a conexão, o sagrado, o prazer, a coragem, a magia e a memória. Um feminino em movimento que abriga a pulsão da vida, de amor, de resistência, de resiliência, de solidariedade e acolhimento.
Mulheres negras carregam na pele a cor do mistério da criação
As mulheres negras carregam na pele a cor do mistério da criação que habita em toda a humanidade. Porém, nem todas as mulheres – negras e não-negras – têm consciência sobre esses saberes. Alguns grupos de mulheres negras (repito: cis, bi, trans e outros gêneros) forjaram esses dons, tais como as mulheres negras de terreiro, inseridas num ambiente onde se predominam práticas coletivas de amor, afeto, sustento e acolhimento. Há também relatos entre as mulheres negras cristãs ou evangélicas que redescobriram a força da conexão mútua como fonte para o fortalecimento e exercício da cidadania. E há as mulheres que seguem em busca deste feminino em fluxo, sem saber que já possuem essa potência, e que basta apenas despertá-la. É preciso, contudo, desenvolver uma consciência e a maturidade para reconhecê-la e acessá-la.
Todos os meses é possível mergulhar no feminino em fluxo sob a guiança dos ciclos lunares. Nestes fluxos, a orientação é vivenciar os fluxos no tempo: há o tempo para subir a montanha e ampliar a escuta e a visão. Há o tempo de expansão e de contração. Há o tempo do mergulho nas águas profundas e do fomento da confiança ativa e do prazer. Há o tempo da semente, há o tempo de plantar e de colher. Há também o tempo de se nutrir, sustentar e construir o caminho em direção à maturidade. Há o tempo de despertar os dons, expressar a beleza e fluir em criatividade. Há o tempo para a paz, há o tempo para guerrear…
Esta sabedoria ancestral tem sido preservada pelas mulheres dentro das tradições milenares[ii] e repassada silenciosamente de geração a geração. No caso das mulheres negras, essa sabedoria também tem sido forjada nas experiências de enfrentamento ao racismo, ao sexismo e a outras formas de violências cotidianas. É o feminino em fluxo, fonte preparatória para a guerra real que vem sendo travada ao longo dos tempos – e que reside em cada um de nós.
Referências
- [i] Ao longo desta reflexão, esse modo de identificação será repetido algumas vezes para lembrar dos vários gêneros que estão sendo incluídos.
- [ii] A Cabala Ancestral, tradição oral com registro de mais de 10 mil anos e originária do continente africano, está entre as tradições milenares.