Brasil perdeu Januário Garcia para a Covid-19
Redação – redacao@negrxs50mais.com.br
Nas culturas africanas os velhos são chamados de Griôs. Detentores do saber. Dizem que quando morre um Griô, fecha-se uma biblioteca.
Januário Garcia
O Brasil perdeu Januário Garcia para a Covid-19 na noite desta quarta-feira, dia 30 de junho, aos 77 anos de idade. Fotógrafo com vasto trabalho nas áreas de publicidade, música e documentação de afrodescendentes. Ele havia sido internado no início do mês com diagnóstico de pancreatite. Ao longo do tempo foi informada a sua previsão de alta. No entanto, após duas semanas de internação, apresentou pequena insuficiência respiratória. Foi submetido a novo teste PCR, que deu positivo para Covid-19. Entrou em isolamento com a informação de que os quadros anteriores estavam estabilizados e em equilíbrio com o uso do antibiótico.
Ex-presidente do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e membro do Conselho Memorial Zumbi, Januário participou de importantes espaços de memória, arte e cultura do povo negro. Dizia que “Existe uma história do negro sem o Brasil, o que não existe é uma história do Brasil sem o negro”.
Foi o autor das fotos de capas de álbuns icônicos de artistas como: Gilberto Gil, Tim Maia, Belchior, Chico Buarque e Leci Brandão. Teve seu trabalho exposto em países como Canadá, México, Bélgica, Senegal, Togo (República Togolesa), Nigéria, Estados Unidos, Áustria, Japão e aqui no Brasil.
Relação com fotografia começou na infância
“A imagem sempre despertou em mim uma curiosidade que eu não sabia explicar a razão. Quando eu estava começando a aprender a ler, um exemplar da revista infantil que chamava Tico Tico, caiu em minhas mãos com seus personagens Reco Reco, Bolão e Azeitona. Nesse número, na seção ligue-ligue da revista, ensinava a fazer um projetor de imagens com uma pequena caixa de madeira no tamanho 20X15X15.
Havia um cinema no bairro que passava filmes às quartas, sábados e domingos, nos dias posteriores de manhã bem cedo eu ia esperar o lixo do cinema para pegar tiras de filmes que jogavam fora, para projetar à noite na minha casa, em uma parede pintada de branco. Dessa maneira comecei a minha relação direta com a imagem. Toda oportunidade que tinha, lia sobre fotografia e cinema. Nunca mais parei.”
Januário Garcia
Site reúne obra
Neste ano de 2021, Januário lançou seu site onde reuniu parte de sua obra, formada por mais de cem mil fotografias, documentos e histórias, reunidas ao longo de 50 anos. Como explica, as imagens retratam a luta diária do negro para conseguir se inserir nessa sociedade, seu cotidiano, sua cultura, a alegria durante o carnaval entre tantos outros momentos. Para ele, “a foto é um veículo de transformação social. São registros que nos permitem adentrar suas casas e transitar pela história de lutas e conquistas do movimento negro no Brasil. Através destas imagens é possível serem encontradas, ainda nos dias de hoje, marcas e reflexos de um passado não superado.”
Uma fotografia tem que conter os livros que o fotógrafo costuma ler, as músicas que ele ouve, os filmes que ele assiste e as exposições que ele frequenta.
Januário Garcia
Era formado em comunicação visual pela International Camaramen School, com estágio no Studio Gamma, sob orientação do fotógrafo George Racz. Fez cursos de extensões de arte visual, história da arte e videomaker. Foi um dos quatro filhos de Geralda da Mata Garcia e Januário Garcia, moradores pobres da periferia de Belo Horizonte. Perdeu o pai aos quatro anos de idade e aos 12 a mãe. Com 13 anos de idade se mudou para o Rio de Janeiro, onde morou nas ruas e abrigos públicos.
Aos 16 anos foi para o Serviço de Amparo ao Menor-SAM e aos 17 se alistou como voluntário da Tropa de Paraquedista do Exército, onde fez curso de Infante Paraquedista e completou os ensino fundamental e médio. Neste período comprou sua primeira câmera fotográfica, uma Olimpus, e fazia fotos dos colegas no quartel.
Anos 1970 marca início da profissão
Uma fotografia se completa com o olhar do outro
Januário Garcia
Após sair do quartel sobreviveu de outras atividades e retornou à fotografia nos anos 1970. Nesta época, com uma câmera Pentax Spotimac II. Foi o início da carreira profissional, com o incentivo de Ana Maria Felippe, sua esposa, que o alavancou na profissionalização. Fotografou para jornais alternativos da época e, prestou serviços como free lancer para a grande imprensa. Começou pela Tribuna da Imprensa e, seguiu em outras redações, como O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, A Notícia, Revista JB, e algumas publicações da Editora Bloch.
Foi convidado para participar da fundação da Photo Galeria, uma organização voltada para a venda de fotografia de arte. Lá conheceu George Racz, que mais tarde o convidou para ser seu assistente. A amizade com Racz permitiu um upgrade de conhecimento e técnica fotográfica que alavancou sua carreira fotográfica.
Quebrando barreiras para fotografar publicidade
Montou um estúdio para trabalhar com publicidade. Encontrou barreiras por ser negro e exercer um trabalho em um setor fora dos que a sociedade reservou para ele. Durante todo tempo que fotografou para publicidade, o único fotógrafo negro que encontrou, nessa área, foi Walter Firmo. Outra referência que teve foi José Medeiros, também negro.
Procurou gravadoras e conseguiu entrar no muito restrito mercado de capas de discos, depois de vários meses visitando as gravadoras. Conseguiu fazer a capa de um grupo de rock chamado “O Peso”. O diretor de arte da Poligram, Aldo Luiz, gostou. Outras capas vieram como alguns dos mais importantes músicos brasileiros.
Entrada no Movimento Negro
Em 1975 Januário entrou em contato com o Movimento Negro carioca. Foi a partir de um encontro no Centro de Estudos Afro-asiáticos na Universidade Cândido Mendes, em Ipanema. Já na primeira reunião, percebeu que ali estava sendo escrita uma nova história na sociedade brasileira. Voltou nas reuniões seguintes e começou a fotografar as reuniões do Movimento Negro. Essa documentação fotográfica passou a ser seu trabalho pessoal. Ao mesmo tempo, uma ferramenta de participação na luta e na história do Movimento Negro Brasileiro.
À primeira reunião foi em companhia de José Ricardo D´Almeida, aluno de um curso de fotografia no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM – onde era assistente do Racz. Em um determinado momento, Januário substituiu Racz, como professor. Havia um aluno negro no curso, que viu sobre sua mesa um exemplar da revista negra americana Ebony, que Januário comprava para desenvolver seu inglês e acompanhar as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos. Esse número da revista falava sobre o ativista negro Malcon X.
No mês de dezembro passado Januário participou do encontro “A fotografia pelo olhar dos mestres negros”, realizado pelo Negrxs50mais. Durante mais de duas horas conversou com os fotógrafos Vantoen P. Júnior e Berg Silva sobre a fotografia atual. O encontro fez parte da programação do Ciclo Zumbi dos Palmares – Consciência e Cultura Brasileira e teve transmissão ao vivo no YouTube.
Você é e sempre será grande. Janu seu sorriso está eternizado entre nós. Ele nos abraça e sabemos que o seu legado nos deixa mais fortes. Saudade é a lágrima da alma. E o Brasil está diante de um grande choro coletivo por sua perda. Vá em Paz.
Andreia Ravell /Roteirista e escritora afrocentrada.