Tia Dodô e a preservação da memória

Tia Dodô e a preservação da memória

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Por Angélica Ferrarez*

Maria das Dores Alves, ou tia Dodô da Portela, foi uma das maiores porta bandeiras da história do carnaval carioca. Mulher negra do interior do Rio de Janeiro, nasceu em 1920, em Barra Mansa, no Vale do Café, chegando à cidade grande, mais especificamente ao Morro da Providência, em 1924, onde viveu toda até a morte em 2015.

Sua mãe, ao se ver com sete filhos no momento de declínio do café, decidiu sair do interior e migrar para o centro da cidade, onde as crianças teriam mais opções de estudos e trabalho. O pai de tia Dodô, no entanto, continuou em Barra Mansa, porque era o único que ainda tinha trabalho, sendo capataz numa fazenda.

Em 1934, aos 14 anos, ela começa a trabalhar numa fábrica perto de casa, na região da Saúde e ali conhece uma das pessoas mais importantes de sua vida, a Dôra ou Dorinha, quem apresentou a Portela para ela. E adivinhem quem era maior parte da mão de obra naquela fábrica no início do século XX: mulheres!!!

“Essa menina vai ser uma grande porta bandeira”

Ao chegar em Madureira, de braços dados com Dorinha e a mãe, ela foi levada a um dos fundadores da escola de samba, Paulo da Portela, que observou a jovem e disse: “Mas Dôra, ela é muito nova”. A própria tia Dodô conta que as porta-bandeiras eram todas “carimbadas, não eram novinhas não”, mas Dôra apostou na novata e seu Paulo mandou chamar seu Antônio, o mestre sala, pra ver “se a menina dava pra coisa”, no que este respondeu depois do ensaio “a seu Paulo: “Essa menina vai ser uma grande porta bandeira”. Naquele instante derrubaram o protocolo e convenceram os dirigentes da escola a falsear a idade da menina, que, para o juiz de menor, tinha 19 anos.

Nas lembranças delas, a hora do intervalo no trabalho era uma festa e Dôra vendo tia Dodô brincar o fandango, segurando uma vassoura com pano amarrado nas pontas, diz que se viu diante de uma porta bandeira. Aliás, no relato de muitas porta bandeiras elas começam, com cabo de vassoura.

O fandango, segundo Nei Lopes, é uma antiga dança espanhola de origem africana trazida para as Américas. Verificando no quimbundo, língua dos escravos provenientes de Luanda, encontramos o verbete fundanga que quer dizer pólvora, numa alusão a fogo e à expressão “em polvorosa”. Pelo depoimento de tia Dodô, ela nos diz: “Não era umbigada e não tinha passo marcado, cada um dançava o que queria numa explosão de alegria”.

Vida dedicada à azul e branco

Tia Dodô teve toda uma vida dedicada à azul e branco, cores da bandeira da Portela. Ficou de 1935 a 1956 como primeira porta bandeira e de 1957 a 1966 passou a compor o segundo casal da escola. Após se aposentar em 1966, ela foi para a Ala das Damas e mais tarde foi chamada para madrinha de bateria, já bem idosa numa singela homenagem. Contudo, foi cuidando do acervo da escola, acumulando objetos materiais em sua casa no Morro da Providência, que seu trabalho se abriu para uma reflexão sobre a preservação da memória de acervos do samba e do carnaval.

Ela era muito conhecida pela sua personalidade “acumuladora”, expressão que ela mesma usava, bem como dizia que sua casa era um verdadeiro “museu de pobre”. Contam que tudo ela levava para casa, da imagem de um santo católico quebrado que pertencia à quadra da Portela, à bandeira utilizada por ela em 1935, (aliás, ano da estreia dela e do primeiro título da Portela), passando por fotos, documentos, vestuários, troféus, medalhas e outros objetos materiais, carregados de memórias que contam muito sobre a história social do samba e do carnaval.

Guardiã da memória da escola

Ela sabia da importância dos objetos materiais e por isso fez de sua casa um museu. Também temos um museu vivo na casa de tia Maria do Jongo, outro na casa de dona Ivone Lara e outros mais achados e perdidos nas gavetas dos sambistas. Chamar a população negra a preservar a produção de sua memória, é chamar a responsabilidade dos atores sociais no universo do samba para o “perigo da história única”. Ter esse senso de responsabilidade não é tarefa fácil, porque em um país onde certas memórias são apagadas em detrimento de outras, há que se buscar a consciência da preservação e a responsabilidade com as gerações futuras.

Um conto de tradição oral nagô na Bahia (narrado por mestre Didi, em Contos Negros da Bahia de 1961) explica como os brancos conseguiram dominar o universo: “limitaram-se a fazer as obrigações, enquanto os negros descuidaram-se das suas”.

Contudo, tia Dodô subverte ao cuidar do legado material da Portela e tem plena consciência de seu ofício enquanto “guardiã” da memória da escola de samba. Tanto que sua casa na Providência é transformada num museu do carnaval no ano de 2014, o Museu Tia Dodô. Com sua morte em 2015, os objetos da casa foram “dispersados”, parte pode ver visto no espaço dedicado a ela na Portela, e outra parte está espalhado por aí. Que os fragmentos de tia Dodô virem sementes de cuidado e preservação com a história nas mãos de quem os tem e que o exemplo dela provoque nos sambistas a consciência de suas obrigações com a memória e logo com o poder!

*Angélica Ferrarez – Fala de samba e do que ela quiser…historiadora, apresentadora do Rodadas, pesquisadora da história e memória do samba. Veja outros artigos de Angélica em https://medium.com/@angelferrarez

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