Sobre negros e/ou pretos no Brasil
O Negrxs 50+ já tinha deixado passar a polêmica acerca da fala do ator Babu Santana no programa BBB da TV Globo sobre o emprego das palavras negro e preto. No entanto, um vídeo recente do jornalista e professor Carlos Alberto Medeiros mostrou que ainda há muito a aprendermos sobre o tema. Assim, seguem aqui, em três publicações, a nossa visão sobre a questão, inclusive ratificando a escolha do nosso nome de batismo.
São artigos do editor dessa plataforma, Ivan Accioly e do jornalista Marcos Luca Valentim, este publicado originalmente no Midia Ninja, mais o vídeo veiculado no Cultne Resenha.
O Movimento Negro muito além do reality show
Por Ivan Accioly – ivan-accioly@negrxs50mais.com.br
Sobre a polêmica do que seria uma “aula” do Babu em discussão no BBB acerca da utilização da palavra “negro”, lamento dizer que é um equívoco considerar a fala como aula. Foi um discurso sincero, mas equivocado, com adaptações forçadas para defender uma posição que menospreza um longo histórico de lutas no país. Além de ser recheado de falsas verdades definitivas, inclusive, com erro sobre etimologia defendido com afinco.
Necessário lembrar que termo “negro” é utilizado com orgulho no Brasil. Que foi apropriado e ressignificado desde o início do século XX. O primeiro movimento formalizado se autodenominou Frente Negra Brasileira (note, não é preta) – fundada em 1931. Desde então aglutinou nomes como Abdias Nascimento, Mundinha Araújo, Lélia Gonzalez, Caó, Solano Trindade e tantos outros, todos conscientes de seus papéis e da comunidade negra da qual eram parte e que- muitas vezes – representavam.
Negros no Brasil são pretos e são pardos
Comparar a questão social/racial brasileira à americana ou de qualquer outro país, é uma distorção, seja do ponto de vista histórico ou sociológico. São realidades que têm pontos de convergência e similitude, mas que são singulares. Mais complicado ainda quando se busca comparar por via da tradução de palavras. É uma aventura que não é possível nem dentro de uma própria língua, pois palavras iguais podem ter significados diferentes no mesmo idioma.
Negros no Brasil são pretos e são pardos. É assim que nos posicionamos e vimos ao longo de décadas buscando ampliar os direitos dessa parcela da população. Quando o IBGE afirma 56% da população brasileira como negra, aí estão os 89,7 milhões dos autodeclarados pardos e os 19,2milhões autodeclarados pretos no total de 209,2milhões de habitantes. A miscigenação iniciada com imposição violenta pelos brancos, tornou-se uma realidade. Constitui a sociedade brasileira. Aqui o direito à autodeclaração é assegurado. Cada um diz a qual etnia considera pertencer. Assim como pode escolher o preto ou o negro para se autodenominar.
Quem se declara pardo sabe que é negro, mas não se vê como preto. Há toda discussão sobre o “colorismo” e sei do peso da melanina, mas essa é outra questão.
A luta incessante pela ressignificação
Na polêmica do momento o que importa é saber que qualquer termo, seja negro, preto, pardo, retinto, azul, nunca pertence aos denominados. São palavras pelas quais foram designados pela força dominante, que é, há séculos, branca. E o poder é dono dos signos, da linguagem. É ele quem empresta significado às coisas, aos sentimentos, aos desejos, ao que quer que seja.
Entender o que é a luta incessante pela ressignificação, os passos que foram dados e respeitar os que estão nesse caminho e pavimentaram a chegada até onde estamos, é fundamental.
O discurso do Babu é empolgante para quem assiste e busca referências e está ávido por conhecimento. Mas é equivocado. Lacra no reality show, mas precisa de lastro para a vida real.
Obs: Nem vou entrar na discussão da etimologia. Fico com a explicação do jornalista Sérgio Rodrigues: “A palavra negro nos chegou do adjetivo nigrum, termo do latim clássico que significava “negro” em diversas das acepções que herdamos, desde a óbvia “que tem a pele escura” até as figuradas, como “sombrio” e “fúnebre”. No século XIII, negro já era usado em português como adjetivo; o substantivo, “a cor do piche”, surgiu dois séculos depois.
O que parece certo é que nigrum não tinha em latim nenhuma relação com a raiz necro, “morto, cadáver”, esta uma importação do grego nekrós. Em português, tais elementos chegaram a se confundir mais tarde: necromancia, “arte de prever o futuro pelo contato com os mortos”, por exemplo, ganhou a variação “nigromancia” por influência de nigrum.”
Negro ou Preto? Eis a questão
Por Marcos Luca Valentim* originalmente publicado no Midia Ninja
Importante ressaltar logo de cara: não há um consenso. As divergências são sutis e variam quanto ao conteúdo, mas jamais quanto à forma: é uma questão léxica e de ressignificação.
Achille Mbembe, filósofo e historiador camaronês, propõe, em Crítica da Razão Negra (Antígona, 2014), que o conceito de escravo tende a se fundir com o de negro até estes se tornarem uma coisa só. Para desfazer isso, ele defende a “reinvenção da comunidade”, e tal conceito encontra respaldo no processo de ressignificação e politização da ideia de raça, proposto pelo Movimento Negro Unificado no final da década de 70.
E aí a pergunta que o título deste texto traz começa a ganhar várias respostas. Um artigo publicado em 1967 por Lerone Bennet Jr, editor sênior da revista Ebony, traz pontos importantes ao debate, como, por exemplo, a discussão que tomou conta dos Estados Unidos à época. Bennet escreve que “há um grupo que sustenta que a palavra negro é um epíteto impreciso que perpetua a mentalidade de mestre-escravo (…) outro grupo, constituído por defensores do Black Power, adotou um novo vocabulário em que a palavra preto é reservada para ‘irmãos pretos e irmãs que estão emancipando a si mesmo’”.
O conceito de raça não existia na África
Tal debate nos remete à fala de Babu, que foi – acredito – um dos assuntos mais comentados nas redes sociais na quarta-feira (1). Ele fala da origem da palavra “negro”, dizendo que vem de nigro – do grego, inimigo – e, por isso, o certo seria falar “preto”. Na verdade, há discordância sobre a origem, posto que alguns historiadores acreditam que o termo tenha vindo do latim nigrum ou ainda necro (referente à morte). Mas o ponto chave é que o discurso de Babu caminha lado a lado ao que foi adotado nos Estados Unidos, o que me leva a crer que a escolha do termo tem mais a ver com não aceitar a forma como os brancos se referem a negros/pretos do que a qualquer outra coisa. Ou seja, se brancos usam negros, vamos usar pretos, como forma de romper com laços escravocratas. Vai nessa linha.
Na África, a raiz é mais profunda, mas até de mais fácil compreensão. O conceito de raça não existia no continente: quem o levou – e o criou, aliás – foi o branco colonizador para justificar a escravidão. Ou seja, lá, antes da chegada dos europeus, não existia nem negro, nem preto: era tão somente um povo de pele escura.
A escravização e as diásporas nos deixaram vários símbolos, e nenhum deles é vazio. Criado-mudo não existe em vão. A destruição do racismo é complexa por inúmeros fatores, e um deles é a língua, pois temos um dicionário ainda racista. Apesar de concordar com a visão de rompimento com o léxico proposto pela escravidão, não ouso discordar dos mais antigos daqui, como o pessoal do MNU, que ressignificou a palavra negro – e antes ainda, na década de 30, com a Frente Negra. Por isso, repito, não há um consenso. A língua é viva, mas a História também tem que ser.
*Marcos Luca Valentim é jornalista e líder do coletivo negro do Coletivo Diáspora