Diva, Áurea Martins chega aos 80 e vai lançar álbum
Neste mês de junho há uma concentração de aniversários de grandes artistas brasileiros, entre eles, os 78 anos de Gilberto Gil, nesta sexta-feira, dia 26; a indefinida comemoração da deusa Elza Soares, que tem várias datas de aniversário e diferentes idades, mas que pela mais corrente faria 90 anos no dia 23; os 76 anos de Chico Buarque no dia 19; os 79 do tremendão Erasmo Carlos no dia 05; os 74 de Maria Bethânia e os 80 anos, no dia 13, de Áurea Martins.
Por Affonso Nunes – do Na Caixa de Cd* – redacao@negrxs50mais.com.br
A comemoração está em andamento, mesmo prejudicada pela pandemia, e um novo álbum vai sair, batizado como “Amizade”, e com lançamento previsto para este ano. Foi Áurea quem explicou em entrevista ao programa Armazém Cultural, da Rádio MEC: “O álbum já está gravado. Estávamos finalizando a produção quando fomos interrompidos pela pandemia. Mas espero que isso passe logo, porque meu desejo é lançar o disco no palco”.
“Amizade”, antecipa Áurea Martins, tem arranjos e produção musical assinados pelo maestro Cristóvão Bastos, conhecido pela elegância de seus trabalhos e é definido pela cantora como “uma celebração”. Uma biografia da cantora, escrita por Lúcia Neves e já lançada, também celebra os 80 anos da artista.
Ouça aqui o single de “Iluminado Sentimento” num duo de voz e piano reunindo Áurea e Cristóvão Bastos:
Elizeth Cardoso como madrinha artística
Embora tenha grande familiaridade com o samba, Áurea é dona de uma voz versátil que se adapta à interpretação dos mais variados gêneros musicais – é imbatível em valsas, boleros e sambas-canções, por exemplo -, o que a levou a se tornar uma das grandes vozes do rádio nos anos 1960, tendo como madrinha artística a Divina Elizeth Cardoso.
Nascida no bairro de Campo Grande, na zona oeste carioca, tinha uma família musical (o pai tocava violão, a avó banjo, a mãe era cantora amadora e dois de seus tios tocavam saxofone e clarinete). Começou a cantar ainda menina e, lembra com bom humor, que sua primeira apresentação em público foi num parque de diversões. Nervosa com a situação, acabou fazendo xixi. “Batizei o palco”, conta.
Capa do livro lançado por Lúcia Neves
Passado o nervosismo inicial, começou a se apresentar em bailes e quadras de escola de samba, como a Portela e Acadêmicos de Santa Cruz. Focada em aprimorar sua voz, entrou para um grupo de canto gregoriano. “A professora gostou do meu timbre, grave e um pouco rouco, e me colocou como solista”, recorda.
Vitória na Rádio Nacional e batismo por Paulo Gracindo e Mário Lago
Sua primeira participação em programas de rádio foi no programa de Arnaldo Amaral, na Mayrink Veiga, onde tocou com o regional de Canhoto, Dino Sete Cordas, Orlando Silveira e Copinha. “Foi uma escola de música para mim”, lembra. Um pouco depois, viria a brilhar na poderosa Rádio Nacional quando tirou o primeiro lugar no Tribunal de Calouros, apresentado por Mário Lago e Paulo Gracindo. Aliás, foi essa dupla que a convenceu a adotar o nome artístico e assim Áldima Pereira dos Santos tornou-se Áurea Martins. “Vendo meu sorriso muito branco e por causa de um cantor chamado Abílio Martins que parecia amigo, eles me batizaram como Áurea Martins quando comecei no Tribunal de Calouros”, explica.
Em 1969, venceu na TV o concurso A Grande Chance, de Flávio Cavalcanti, que tinha a cantora Maysa entre os jurados. Com o dinheiro da premiação financiou seu primeiro LP, “O Amor em Paz” (1972), com arranjos de Luiz Eça, um trabalho impecável com participação especial de Paulo Mendes Campos declamando poemas com piano de grande Eça ao fundo e que você ouve abaixo:
O encontro com Hermínio Bello de Carvalho
Nos anos seguintes, aprimorou seu talento como crooner cantando no circuito de bares cariocas, mas, infelizmente, sem grande evidência até seu encontro com Hermínio Bello de Carvalho. “Se não fosse o Hermínio eu estaria cantando em bares até hoje”, reconhece, ao comentar a importância do produtor e compositor em sua trajetória artística. O encontro se deu por intermédio da cantora Zezé Gonzaga.
Hermínio é dono do que podemos chamar de grande faro musical e, além de Áurea, ajudou a colocar de volta ao mercado nomes como Clementina de Jesus, Cartola. A partir de 1990, Áurea voltaria a gravar e lançar álbuns. “Até Sangrar” (2008) foi um dos mais marcantes e lhe deu o título de melhor cantora no Prêmio da Música Brasileira do ano seguinte. Ainda em 2009, o cineasta Zeca Ferreira lançou o premiado curta “Áurea”, que mostra um dia de trabalho da artista na noite carioca, que você assiste aqui:
Relato emocionado de Hermínio
Tomo aqui a liberdade de reproduzir, na íntegra, o emocionado depoimento de Hermínio Bello de Carvalho, em suas redes sociais, comentando o aniversário de Áurea Martins:
“Sabe-se, ao chegar, quando está contrafeita: os óculos escuros pendem até a ponta do nariz, destacando os olhos que faiscam, chamuscam, trovejam. Adentra a casa já cuspindo marimbondos. Volta e meia carrega ou um bolsão (aliás, de grife) ou uma sacola de supermercado, conforme as circunstâncias. E é nesse matulão que ela transporta suas trapizongas. Se está com boina, dela se desfaz e deixa-a num canto do sofá. O ombro direito meio pendido, senta-se esbaforida, dou-lhe um copo d’água e ela destrava a língua. Conta um caso qualquer que se passou há pouco com ela na rua, alguém a desfeiteou ou percebeu-se desfeiteada, não importa. Solta alguns palavrões, e há que se dar um tempo para que ela se recomponha e relate o acontecido.
O acontecido, no caso, não tem muita importância para este relato. E quando se acalma, abre um sorrisão com dentes perolizados, alvíssimos, próprios, e temos de volta nossa amada Áurea Martins em toda sua plenitude.
Aprender umas canções em inglês para atender a freguesia
Estamos na metade de 2010. O cenário é meu apartamento, que estará com pelo menos dois ou 3 outros amigos de Áurea, quase sempre músicos, até porque haverá ensaio. “Não, obrigada: não bebo” – rejeita o uísque e beberá um copo de água, respirará fundo – e aí vão rolar as histórias, as lembranças, de como venceu o programa “A grande chance” do Flávio Cavalcanti, Maysa estendendo-lhe uma rosa, Bibi Ferreira no júri e é bom lembrar que ela ainda era Áldima, na pia batismal. Paulo Gracindo é que a batizou artisticamente como Áurea.
E aí veio uma fase de quase invisibilidade, menos para aqueles que freqüentavam as noites da Lapa. A “crooner de voz rouca” estava lá, hospedando o repertório de outras cantoras. Teve até que aprender umas canções em inglês para atender a freguesia. É eclética no bom sentido. É preponderante a qualidade de tudo que sua voz expele; literalmente expele. Se esfrega nas palavras, porque o hábito da leitura deu-lhe mais essa qualidade: a de se tornar íntima dos versos que canta.
Mais de 50 anos de carreira e discografia com 3 títulos.
“Não vai rolar um sambinha?” perguntam-lhe às vezes, porque afinal a negona está ali para entreter, deve ser eclética, se possível tocar um reco-reco ou puxar um partido alto para a platéia acompanhar e, de lambujem, dar uma reboladinha. Ela, desaforada, responde à provocação com o “Janelas Abertas” de Tom e Vinicius. E aí dá-se o deslumbre.
Foi ao mundo. Trabalhou com a quase totalidade dos instrumentistas brasileiros. Já deu “canja” com Carmen Mac Rae, Toots Thieleman, e uma das fases mais brabas foi quando cantava nas boates da zona sul, com outros operários de calibre: Alcione, Emílio Santiago, Djavan, Dafé. Era preciso garantir o pão de cada dia. Mais ou menos nessa época a Divina Elizeth saía de casa, coisa rara! para ouví-la onde estivesse se apresentando. A biografia da Divina, escrita por Sergio Cabral pai, não me deixa mentir. Outra admiradora: Zezé Gonzaga, com quem dividiu um espetáculo sobre Lupicínio Rodrigues, mais o piano-e-voz de Zé-Maria Camiloto Rocha, que produziria comigo o seu terceiro disco. O primeiro, ela o fez com Luizinho Eça, e na companhia do poeta Paulo Mendes Campos. Há uns poucos anos, o segundo disco com produção de João de Aquino, e mais recentemente o “Até sangrar” – Em mais de 50 anos de carreira, sua discografia registra apenas 3 títulos.
Prêmio de melhor cantora de 2009
Quando vejo Áurea Martins sair de sua quase invisibilidade depois daquele primeiro lugar na “Grande chance”, e de longe acompanhar sua subida ao palco para receber, ovacionada, o prêmio de melhor cantora de 2009 – fico lamentando que nem Elizeth nem Zezé Gonzaga, suas mais fiéis admiradoras, estivessem ali.
Ei-la aqui em casa, emocionada com a presença de Fernanda Montenegro, que veio gravar um depoimento sobre Áurea para um Especial de TV. E, na mesma semana, ei-la no programa da Xuxa, e se reencontrando por coincidência com Fernanda no mesmo palco: “Áurea!”, exclamou a Diva, feliz com o reencontro – e se abraçaram para espanto da apresentadora, atônita com o que via. Nunca havia, suponho, ouvido falar da cantora. Lembro também de Chico Buarque entrando no estúdio para dividir com Áurea uma faixa do “Até sangrar”. Áurea tremia de emoção.
Senhores: estou falando de Áurea Martins, essa negona de cara enfezada ou de sorriso estonteante, conforme o momento assim o exigir, estou falando de uma das grandes cantoras brasileiras que não ganha primeiras páginas nos segundos cadernos culturais, mas que cumpre sua trajetória se espelhando naquelas duas magníficas Senhoras, que hoje pressinto iluminarem seus passos”.
Discografia
- (2012) Iluminante • Biscoito Fino • CD
- (2012) Iluminante • Biscoito Fino • DVD
- (2010) Depontacabeça • Biscoito Fino • CD
- (2007) Orquestra Lunar • Rádio MEC • CD
- (2007) Até Sangrar • Biscoito Fino • CD
- (2003) Outros ventos • Independente • CD
- (2003) Áurea Martins • Independente • CD
- (1990) Bordões • Top Voice • CD
- (1990) Bordões (participação) • Top Voice • CD
- (1972) O amor em paz • RCA • LP
Fonte da discografia: http://dicionariompb.com.br/aurea-martins/discografia
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