Música em festa, os 100 anos da Divina Elizeth Cardoso

Música em festa, os 100 anos da Divina Elizeth Cardoso

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Por Affonso Nunes – do Na Caixa de CD* – redacao@negrxs50mais.com.br

Os 100 anos da Divina Elizeth Cardoso são comemorados nesta quinta-feira, dia 16, e as gravadoras Universal Music e Biscoito Fino anunciam lançamento de álbuns da cantora em streaming.

A Universal Music, que detém a maior parte do acervo da artista e os direitos de parte de sua discografia, lança em todas as plataformas de streaming 26 álbuns da cantora e três playlists exclusivas. São 17 títulos de carreira, um coletivo, um EP com quatro faixas raras e sete compilações. Este rico material, indispensável para quem quer conhecer a música brasileira, soma-se a outros 14 álbuns de carreira e cinco coletâneas que já estavam disponíveis.

Já a Biscoito Fino lançará dois projetos para celebrar o centenário de Elizeth: um deles sobe para as plataformas digitais também nesta quinta. Trata-se de “Todo Sentimento” (1991), último álbum gravado por Elizeth, ao lado de Raphael Rabello, num duo de voz e violão; o segundo é “Elizeth Cardoso – 100 Anos Ao Vivo”, com lançamento no próximo dia 31. É um registro ao vivo de vários artistas em um show no Sesc São Paulo.

Cantora atravessou gerações e está na lista das maiores

Foto: Arquivo Nacional

O que poucos sabem é que, de todas as suas contemporâneas, Elizeth foi uma das que mais demoraram para chegar ao grande público e atingir o sucesso, via rádio, TV e disco. A cantora viveu o apogeu da chamada “Era do Rádio” e foi uma das poucas intérpretes que manteve fama e prestígio após a chegada da Bossa Nova.

Seu envolvimento com os meninos que revolucionaram a MPB é comprovado nos versos de Vinícius de Moraes na sua “Carta do Tom” (“Rua Nascimento Silva, cento e sete / Você ensinando prá Elizeth as canções de canção do Amor demais”). A artista atravessou gerações e seu timbre limpo, fresco, luminoso enluarou nossas vidas. Elizeth Cardoso figura em qualquer lista de maiores cantoras brasileiras seja qual for o tamanho da relação.

Nascida em família de músicos – o pai, violonista e seresteiro – foi seu grande incentivador. Estreou aos seis anos, cantando na Kananga do Japão, uma das muitas sociedades dedicadas à dança e ao carnaval carioca. Aos 10, teve de sair da escola para trabalhar no que aparecesse pela sua frente – de charutaria a salão de cabeleireiros; aos 16, cantou numa festa em casa para um grupo de amigos do tio, Pedro, que tocava violão. Entre outros estavam Pixinguinha, João da Bahiana, Dilermano Reis e Jacob do Bandolim. Este a levou para um programa de calouros da Rádio Guanabara e ali começou a carreira.

Taxi-girl e crooner antes do sucesso

Logo participaria de programas de prestígio ao lado de ídolos como Vicente Celestino, Aracy de Almeida e Moreira da Silva. Mas o sucesso só viria alguns anos depois – nesse intervalo chegou a trabalhar como taxi-girl – quando passou por sua grande escola musical: atuou como crooner no famoso Dancing Avenida. A virada de chave veio com a gravação do samba-canção “Canção de Amor” (Chocolate e Elano de Paula) num compacto de 78 rotações, que apresentou definitivamente sua voz cool ao Brasil com um cartão de visitas irrepreensível e que você ouve aqui com a gente:

O êxito da pequena bolacha foi tanto que em pouco tempo já integrava o elenco da famosa Rádio Tupi, além de trabalhar nas boates mais chiques do Rio de Janeiro, como Casablanca e Vogue, e viver entre Rio e São Paulo, onde atuava ainda na rádio e TV Record. Logo, tornou-se a preferida dos grandes intelectuais e músicos de seu tempo, gozando sempre de muito prestígio na imprensa, inclusive sendo sempre destacada entre “as dez mais elegantes”.

Após rápida passagem pela Continental, assinou contrato com a Copacabana (hoje incorporada à Universal Music), inaugurando uma escalada divinal, chegando a gravar dois ou três álbuns por ano, num total de 33 dos 47 LPs de carreira. Todo compositor brasileiro queria ser gravado pela Divina!

Bossa nova e o antológico “Canção do Amor Demais”

Já consagrada, carimbou o sucesso da Bossa Nova em 1957, quando gravou o antológico álbum “Canção do Amor Demais”, com músicas de Tom Jobim e Vinícius e a participação de um novato chamado João Gilberto ao violão, imprimindo a marca bossanovista ao clássico “Chega de Saudade”. Seu papel nessa transição para o que se chama hoje de moderna canção brasileira deixou obras-primas na Bossa, no samba, no choro e até mesmo no jazz, como provam seus magníficos trabalhos com Moacyr Silva e com o Zimbo Trio, que tornou o som da bossa mais explosivo, nos anos 1960.

Dessa fase com o Zimbo, a Universal promete resgatar para as plataformas em breve “Balançam na Sucata” (1969) e “É de Manhã” (1970).

Cada disco de Elizeth era um misto do hit parade da época, algo das décadas que o precederam, com alguns lançamentos seus em primeira mão, dentre os quais os sambas-canções “Canção de amor”, “Dá-me tuas mãos”, “Nossos momentos”, “Canção da manhã feliz”, “Tudo é magnífico”, “Meiga presença”, “Apelo” e alguns mais sacudidos, como “É luxo só”, “Deixa andar”, “Naquela mesa”, sem contar o samba-rock dançante “Eu bebo sim”, seguramente a faixa que mais trouxe a cantora para perto de um público mais jovem, devido a seu groove moderníssimo.

Há outros sambas que ela não lançou, mas suas regravações ficaram célebres em sua voz, como “Sei lá”, “Mangueira”, “Mulata assanhada”, “Na cadência do samba”, o inesquecível “Barracão”, além de “Tem que rebolar”, em dueto com Cyro Monteiro, seu parceiro no “Bossaudade”, que apresentaram juntos na TV Record nos idos de 1965 e 66.

Conheça os relançamentos de Elizeth Cardoso

“Fim de Noite” (1958)

Álbum editado originalmente no formato “LP de 10 polegadas”, com oito faixas, trazendo mais quatro quando foi reeditado em “12 polegadas” – “Culpe-me”, “Segredo”, “Negro telefone”, todas de Herivelto Martins (com parceiros), lançadas num álbum-tributo ao compositor, além de “Nunca é tarde” (João Pinto). Destacam-se as regravações de três clássicos de nosso cancioneiro: “Último desejo” (Noel Rosa), “Feitio de oração” (Vadico/ Noel), “Prece ao vento” (Gilvan Chaves) e “No rancho fundo” (Ary Barroso/ Lamartine Babo).

“Naturalmente” (1958)  

O destaque deste álbum vai para “É luxo só”, samba que Ary Barroso fez com Luiz Peixoto em 1956 pensando na Divina, especialmente para o musical Mister Samba, de Carlos Machado. O espetáculo de grande sucesso estreou na boate Night and Day, da Cinelândia carioca, e tinha como mote a própria trajetória de Ary, que contribuiu neste disco com outra inédita, “Jogada pelo mundo”. O samba-canção “Suas mãos” (Pernambuco/ Antonio Maria), o sambão “Na cadência do samba” (Luiz Bandeira), cuja versão instrumental de Waldir Calmon foi tema do “Canal 100” nos cinemas da época, e a valsa “Olha-me, diga-me” (Tito Madi) são dignas de nota.

“Magnífica” (1959)

Este álbum é todo dedicado a canções de Marino Pinto com seus parceiros famosos, como Mario Rossi (“Cidade do interior”), Carlos Lyra (“Velhos tempos”, lançada por Dalva de Oliveira) e Tom Jobim (“Aula de matemática”, criação de Sylvia Telles).

“A Meiga Elizeth Nº2” (1962)

Este álbum abre com o samba carnavalesco “Deixa andar” (Jujuba), grande sucesso da cantora, que defende ainda duas joias de Haroldo Barbosa e Luiz Reis, o sambalanço “Moeda quebrada” e o samba-canção “Tudo é magnífico”, outro grande hit de sua carreira, além de recriar o clássico de Tito Madi, “Cansei de ilusões”.

“A Meiga Elizeth Nº4” (1963)

Este disco que não obteve muito êxito à época, mas vale ser redescoberto por suas canções de Billy Blanco (“Balada da solidão”, “Lado bonito de um mal”), da dupla estourada naquele tempo, Evaldo Gouveia e Jair Amorim (“Nosso cantinho”, “Existe alguém”), Silvio César (“Seu José”), Fernando Lobo (“Quando vier o sol”), entre outros.

“A Meiga Elizeth Nº5” (1964)

Este, também um disco com bons compositores, mas sem maiores hits. Destaque para as recriações de “Canção que nasceu do amor” (Rildo Hora/ Clovis Melo), já gravada por Cauby Peixoto, e “Diz que fui por aí” (Zé Kéti/ Hortênsio Rocha), primeiro hit de Nara Leão.

 “400 anos de Samba” (1965)

O ano do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro foi amplamente comemorado em 1965, seja pelas escolas de samba cariocas, concurso de música carnavalesca promovido pela prefeitura e diversos lançamentos pelas gravadoras, que editaram discos especialmente para a data. Neste álbum de Elizeth, apenas o samba-título de Luiz Antônio é alusivo ao tema. Entre as demais, o destaque vai para o samba “O meu pecado”, da incendiária dupla Nelson Cavaquinho e Zé Kéti.

“Elizeth Sobe o Morro” (1965)

Um dos discos mais importantes da Divina. Aqui as turmas do show “Rosa de Ouro” e das noitadas do restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, grande “point” da intelectualidade e da música daquele tempo, são devidamente incorporadas ao seu repertório, incluindo Nelson Cavaquinho (“Vou partir”, “A flor e o espinho”, “Luz negra”), Zé Kéti (“Malvadeza durão”), Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho (“Folhas no ar”), Paulinho da Viola e Candeia (“Minhas madrugadas”), Cartola (“Sim”), entre outros.

“A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro” (1966)

O programa “Bossaudade” apresentado pela dupla Elizeth Cardoso e Cyro Monteiro na TV Record, entre 1965 e 66, rendeu dois álbuns. O primeiro, com ele ainda no ar, marcou época, incluindo pot-pourris incendiários de samba, à moda do “Dois na Bossa”, de Elis Regina e Jair Rodrigues, além de outros deliciosos exemplares do gênero gravados separadamente, como “Tem que rebolar”.

“Muito Elizeth” (1966)

Um novo e requintado álbum com a assinatura do produtor Moacyr Silva renovava mais uma vez o som da cantora, dividindo-se entre o acompanhamento de regional (“Mundo melhor” e “Lamento”, ambas de Pixinguinha e Vinícius de Moraes) e o de uma cozinha mais bossa-jazz, com influência da “MPB” nascente, destacando “Cidade vazia” (Baden Powell/ Lula Freire), “Sem mais adeus” (Francis Hime/ Vinicius) e dois sambas-canções que se tornariam seus grandes emblemas vida afora, “Meiga presença” (do filho Paulo Valdez, com Otávio de Moraes) e “Apelo” (Baden Powell/ Vinicius).

“A Enluarada Elizeth” (1967)

Após cantar a “Melodia sentimental”, de Villa-Lobos com letra da poeta Dora Vasconcellos, Elizeth além de “Divina”, passou à “Enluarada”, acumulando a partir de então dois epítetos. Neste LP, além da canção citada, reviveu dois hits de Orlando Silva, o samba carnavalesco “Meu consolo é você” e o eterno samba-choro “Carinhoso”. Também recriou o samba-canção bossanovista “Demais”, do repertório de Sylvia Telles e Maysa, e entoou um longo “Seleção de sambas da Mangueira”.

“Viva o Samba – Elizeth Cardoso, Francineth, Cyro Monteiro, Roberto Silva” (1967)

Este álbum coletivo valoriza os compositores das escolas de samba carioca, até então bem pouco gravados e conhecidos. Coube a Elizeth defender três deles, o futuro clássico “Meu drama (Senhora tentação)”, de Silas de Oliveira, do Império Serrano, que anos depois seria sucesso de Roberto Ribeiro; e dois menos conhecidos, “Festas tradicionais do Rio de Janeiro”, de Ledi Goulart e Hinha, da Mocidade Independente de Padre Miguel, e “Perdi a namorada”, dos portelenses Catoni, Jabolô e Waltenir.

“A Bossa Eterna de Elizeth e Cyro Nº2” (1969)

Mais um álbum da dupla que apresentou o “Bossaudade” na TV Record. Nele, Elizeth reviveu “Louco”, de Wilson e Henrique Batista, sucesso de Aracy de Almeida no carnaval de 1947, “Sei lá, Mangueira” (Paulinho da Viola/ Hermínio Bello de Carvalho), que foi defendida num festival daquele ano por Elza Soares, sendo novamente sucesso em sua voz, além de outros medleys azeitados em duo com o Formigão.

“Falou e Disse” (1970)

Além de ser um álbum de ótimo repertório, Elizeth teve aqui a primazia de lançar João Nogueira como compositor em “Corrente de aço”. Defendeu ainda belas parcerias de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro (“É de lei”, “Refém da solidão”, “Aviso aos navegantes”), regravou o hit de Paulinho da Viola da época, “Foi um rio que passou em minha vida”, e trouxe um belo samba de roda da Bahia, “A flor de laranjeira”.

“Feito em Casa” (1974)

Aproveitando a grande explosão mercadológica do samba nos anos 70, sobretudo após o estouro de Martinho da Vila e Clara Nunes, Elizeth fez um álbum em que gravava partido alto, como “Água de sereno”, de Romildo e Toninho, que acabavam de estourar “Conto de areia” na voz de Clara, e sambas derramados como “Peso dos anos”, de Candeia e Walter Rosa.

“Elizeth Cardoso” (1976)

Aqui também um álbum com a prevalência do samba. Vale destaque para a até então inédita “Minha verdade”, de Dona Ivone Lara, ainda antes da fama, com Délcio Carvalho; “Entenda a rosa”, de João Nogueira, e uma inédita da dupla João Bosco e Aldir Blanc, “De partida”.

“Live in Japan” (1977)

Um dos melhores da Divina foi este “Live in Japan”, pioneiro álbum gravado por uma artista brasileira naquele país, em que ela realizava também sua primeira turnê. O repertório é irrepreensível, trazendo apenas clássicos da música brasileira, alguns sempre associados a seu nome (“Barracão”, “Naquela mesa”, “Apelo”, “É luxo só”, “Manhã de carnaval”) e outros igualmente emblemáticos (“A noite do meu bem”, “Última forma”).

“A Cantadeira do Amor” (1978)

Este álbum duplo marcou o fim de seu contrato com a Copacabana. São 26 músicas que fazem um passeio por várias fases da história da música brasileira, incluindo alguns de nossos maiores compositores, como Chico Buarque (“Até pensei”), Hélio Delmiro e Paulo Cesar Pinheiro (“Velho arvoredo”), Noel Rosa (“Século do progresso”), Baden Powell e Vinicius de Moraes (“Deixa”) e Cartola (“Acontece” e “Autonomia”).

“Todo Sentimento” (1991)

Último disco de Elizeth Cardoso, lançado em vinil um ano após sua morte da cantora. Em 1989, Elizeth apresentou-se no Projeto Seis e Meia ao lado do violonista Raphael Rabello, com enorme sucesso: o encontro se repetiu em estúdio para a gravação de Todo sentimento, no mesmo formato de voz e violão consagrado na temporada de shows no Rio de Janeiro. O álbum seria reeditado em 2003 como parte integrante da caixa “A Faxineira das Canções”, produzida por Hermínio Bello de Carvalho para a Biscoito Fino.

Extras

“Elizeth Cardoso” (EP 4 faixas)

Pequena coletânea inédita de quatro faixas, incluindo “Trinta e um de dezembro” e a regravação do sucesso de Francisco Alves, depois revivido por Caetano Veloso, “Chuvas de verão”, ambas do 10 polegadas “Música e Poesia de Fernando Lobo” (1957), do qual fazia parte ainda “Bom é querer bem”, que está incluída no álbum da série “Bis Cantores do Rádio”.

Outro destaque é Quarto vazio”, do LP “Um Compositor em Dois Tempos – Jubileu de Prata de Herivelto Martins” (também de 1957), que trazia cinco números com a cantora, sendo esta a única que não entrou em outros produtos, e “Balão apagado”, rara composição de Noel Rosa e Marília Batista, lançada em primeira mão num 78 rpm, em 1961.

“Elizeth Cardoso – 100 Anos Ao Vivo” (2020)

Gravado no Sesc Pinheiros (SP) em março passado, o show que presta tributo à cantora Elizeth Cardoso reuniu intérpretes de diferentes estilos em torno das canções que ela imortalizou. Alaíde Costa, Ayrton Montarroyos, Claudette Soares, Eliana Pittman, Leci Brandão e Zezé Motta se reversam no palco, convidados pelo produtor musical Thiago Marques Luiz, que se especializou em tributos a grandes nomes da música brasileira. A maioria do elenco conviveu com Elizeth Cardoso, como Claudette, contratada da TV Record no mesmo período em que a homenageada apresentava o programa Bossaudade. Zezé Motta gravou um álbum com clássicos de Elizeth em 2000, e Leci a conheceu no início da carreira, participando de um disco dedicado ao sambista Donga.

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Imagem destacada: Universal MusicDemais imagens: reproduções

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