O que há por trás das boas intenções dos ODS sob liderança da ONU?
Por Sideise Eloi* – redacao@negrxs50mais.com.br
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão sendo amplamente divulgados e muitos projetos institucionais e empresariais sendo planejados tendo como base e/ou justificativa suas metas. A intenção pode ser boa, mas algumas metas parecem utópicas dentro de um sistema capitalista.
Este sistema tem como base o crescimento econômico, a adequação de recursos ao lucro e mercados regulados pelas grandes empresas. O capitalismo restringe a distribuição da riqueza e dos bens públicos levando a desigualdades estruturais.
A construção de uma governança global liderada pela ONU buscou com os ODS dar respostas, ou melhor, solucionar, a crise socioambiental e econômica, consequências do sistema capitalista. Através de conferências mundiais e declarações internacionais a ONU chancelou um programa de “Desenvolvimento Sustentável” com objetivos e metas para quatro dimensões:
- Sociais: relacionadas às necessidades humanas: alimentação, água, saúde, educação, bem-estar, igualdade, justiça.
- Econômica: trata do consumo e produção, energia limpa, dos resíduos, entre outros.
- Ambiental: trata da preservação do meio ambiente, conservação dos mares e oceanos até o combate à mudança do clima.
- Institucional: parcerias globais para o fortalecimento e implementação do desenvolvimento sustentável
Mecanismos do capitalismo e desenvolvimento sustentável
Analisando os mecanismos do capitalismo e o programa com as dimensões do desenvolvimento sustentável, cabe algumas observações com relação a alguns pontos que, à primeira vista, parecem ser contraditórios.
A primeira observação está relacionada ao crescimento econômico x meio ambiente. O crescimento econômico está ligado ao Produto Interno Bruto (PIB), a capacidade de uma região ou pais de produzir. Para que este crescimento ocorra são necessários matéria prima, indústria, tecnologia, recursos do meio ambiente, além disso, muito desses processos acabam gerando poluição: do ar, do solo e das águas. Desta forma, fica difícil pensar em crescimento e preservação do meio ambiente.
A segunda observação está relacionada à acumulação de riqueza x redução das desigualdades, que consta no ODS número 10. A acumulação de riqueza não necessariamente vem acompanhada da diminuição das desigualdades. Nos últimos anos vemos o contrário, um exemplo disso, é o caso dos EUA, um país desenvolvido e com alta taxa de desigualdade de renda entre os países ricos (World Inequality Report 2018).
A terceira observação está relacionada aos símbolos utilizados. Percebe-se no ODS número 8 – “Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos”, o símbolo de uma seta apontada para cima, e no número 12 – “Assegurar padrões de consumo e produção sustentáveis”, o símbolo como o oito deitado. Os dois trazem uma ideia de infinito, sem limite, o que fica incoerente quando se lê a descrição destes objetivos.
Questão racial não foi incluída na agenda da sustentabilidade
Outro ponto importante é a falta de um objetivo para tratar da interseccionalidade com a agenda racial. O debate em torno da construção dos ODS, não foi articulado aos enunciados da III Conferência Mundial contra o Racismo – World Conference Against Racism (Durban 2001). Esta conferência respondia à luta contra o Apartheid da África do Sul e as demandas colocadas em Conferências anteriores, como a Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) e as Conferências Mundiais de Combate ao Racismo, Discriminação Racial (Genebra, 1978 e 1983). A conferência reconheceu o racismo, a constante violação dos direitos humanos e as desigualdades estruturais que afetam o acesso aos direitos básicos e a igualdade de oportunidade dos povos afrodescendentes.
Os impasses desta agenda levaram a ONU a implementar a Década do Afrodescendentes (2015 – 2024). Entretanto, a questão racial ainda não foi incluída na agenda da sustentabilidade. A questão racial é tratada de forma genérica. Neste sentido, é importante que seja qualificado um debate específico sobre as desigualdades raciais no âmbito dos ODS, um debate que leve em consideração as especificidades de cada povo, cada grupo social.
Desta forma, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, ao negligenciarem determinados padrões de desigualdade, parecem reforçar a promoção global do capitalismo e desviam os olhares que poderiam estar focados numa revisão social profunda, onde a quantidade dê lugar a qualidade e os meios de produção possam ser compartilhados.
Estamos presos às posses, o “Ser” deu lugar ao “Ter”
Parece que estamos condicionados a uma forma determinada de sociedade que, mesmo falida, insistimos em sustentá-la como se não estivesse vida longe do consumo desenfreado, da acumulação de riqueza e das desigualdades. Estamos presos às nossas posses, de ter mais e mais e esquecemos de estabelecer contato.
O Ser – eu sou, deu lugar ao Ter, eu tenho. Em “Ideias para Adiar o fim do Mundo”, Ailton Krenak pergunta: “Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser?”. Ele faz uma crítica ao conceito de sustentabilidade, segundo qual seria uma utopia engenhosa das corporações para separar a humanidade, ser humano – da Terra, nos somos natureza, tudo é natureza.
Vamos colocar para fora o “não dito”, não dá mais fara fugir, fingir que não existe. No mundo 820 milhões de pessoas passam fome (ONU), no Brasil o desmatamento aumentou 50% em 2019 (Observatório do Clima), a pobreza atinge 54,8 milhões de pessoas no Brasil (IBGE, 2017). A desigualdade racial no Brasil, fruto do racismo e da escravização, faz com que os negros possuam severas desvantagens com relação a população branca: na educação, no mercado de trabalho, na distribuição de rendimento, nas condições de moradia, na violência e repressão policial.
Vamos continuar sonhando para “adiar o fim do mundo”
Não sei o que há por trás da boa intenção dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, mas não podemos romantizar, deixando para a governança global a solução dos nossos problemas. Nós fazemos parte da sociedade e podemos ser atores da mudança que queremos ver.
É preciso sonhar, compartilhar nossos sonhos, torná-los realidade através das ações individuais e coletiva, estar atentos às pautas defendidas pelos governantes que escolhemos. Vamos nos alimentar de esperança, estar abertos a novas experiências e acordar para continuarmos vivos. Vamos continuar dançando, sonhando e fazendo histórias para “adiar o fim do mundo”.
Bibliografia:
- AILTON, Krenak. Ideias para Adiar o Fim do Mundo
- DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito da Natureza Intocada. p. 41-55
- ELI da Veiga. O Âmago da Sustentabilidade
- LOWY, Michael. Fontes e Recursos do Ecossocialismo
- LOWY, Michael. Ecossocialismo e Planejamento Democrático
- SANTOS, Elinaldo Leal; BRAGA, Vitor; SANTOS, Reginaldo Souza; BRAGA, Alexandre M. S. Desenvolvimento: um Conceito Multidimencional.
*Sideise Eloi é psicóloga e tem experiência de doze anos em responsabilidade social e sustentabilidade. Atua em: desenvolvimento profissional; projetos sociais; programas para igualdade racial nas empresas e ODS. Mestranda em Desenvolvimento Sustentável pela UFRRJ, utiliza a facilidade de solucionar problemas e de comunicação, para contribuir com um mundo mais justo e igualitário, em projetos voltados para desenvolvimento humano, institucional e social.
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Imagem em destaque: satélite geoestacionário GOES East
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