Entre as ruas e as redes: mulheres negras na trama do movimento
Por Angélica Ferrarez de Almeida* – exclusivo para Negrxs50+
Neste artigo, vamos refletir como mulheres negras têm disputado narrativas no imaginário virtual, qualificando espaços digitais como instrumental na luta antirracista e antissexista. Elas estão formando não só um campo de debates, mas impulsionando o ativismo em diversas camadas sociais, em uma perspectiva geracional e internacionalista de luta.
Cresce entre as mulheres negras a consciência de que o processo de globalização, determinado pela ordem neoliberal que, entre outras coisas, acentua o processo de feminização da pobreza, coloca a necessidade de centralidade de suas pautas e dos regimes de visibilidade engendrados em primeira pessoa. Daí que a luta ganha em status feminino e faz, por exemplo, a imagem da filósofa e ativista norte-americana Angela Davis, de punho cerrado em cima de um carro nas manifestações de junho de 2020, nos Estados Unidos, uma imagem carregada de significados que clamam por mudanças e por conexão entre as ruas e as redes.
Angela Davis
Angela Davis nasceu em 1944, no sul dos Estados Unidos, em uma família de classe média. Sua mãe, Sallye Davis, era ativista e, junto com outras mulheres negras, já participava do movimento pelos direitos civis nos EUA, que a nível comunitário era organizado por mulheres negras em suas cidades. Foi neste ambiente que Angela cresceu, mas só despontou como grande ativista após ter cursado seus estudos em Literatura Francesa e Filosofia.
Quando Angela, aos 74 anos, sobe no carro e marcha com manifestantes na cidade de Oakland, na Califórnia, no 19 de junho de 2020, ela representa a força do ativismo de mulheres negras naquele país. Ela que passou um ano no Partido dos Panteras Negras, mas se filiou pelo Partido Comunista, era acima de qualquer organização uma ativista em si.
Black Lives Matter
Atualmente, três jovens ativistas estão chamando atenção a nível mundial por serem as fundadoras do black lives matter, movimento que Angela apoiou virtualmente, mas que a fez sair de casa em plena pandemia e conectar-se às ruas. O black lives matter é um movimento fundado por três mulheres negras norte–americanas: Alicia Garza, Opal Tometi e Patrisse Cullors. Apesar de ter sua origem nos Estados Unidos em 2013, o movimento se alastrou para Austrália, África do Sul e Brasil, em 2016.
Conjugando as lutas políticas entre as ruas e as redes, o movimento que começou com uma hashtag tem raízes nas lutas dos movimentos civis norte-americano e busca criar regimes de visibilidade e denúncia dos genocídios contra a população negra, da violência policial contra a comunidade e levantar debates acerca da política do encarceramento em massa, do feminicídio e das questões de gênero e o bem viver de mulheres trans.
O encontro de Alicia, Opal e Patrisse aconteceu quando elas faziam um curso de treinamento de organizadores comunitários na Organização Negra para a Liderança e Dignidade (BOLD). Mas foi nas redes sociais, no verão de 2013, impulsionada pela absolvição de George Zimmerman, policial branco que matou o jovem negro Trayvon Martin (aliás, abrindo literalmente um parêntese que daria outro texto, a arma usada pelo policial neste dia foi leiloada por U$$138,9mil, o equivalente a R$700 mil) foi que Alicia Garza escreveu um post no Facebook intitulado: “Um bilhete de amor para os negros”, em que dizia: “Nossa vida é importante, a vida é negra”. Patrisse Cullors respondeu nos comentários da postagem: “#BlackLivesMatter”. Daí a hastag ganhou as redes e, um ano depois, as ruas, após a morte de mais dois jovens afro-americanos: Michael Brown, em Ferguson, e Eric Garner, em Nova York. Hoje, Vidas Negras Importam viraliza em escala mundial, conectando as ruas e as redes em uma mesma luta.
Alicia Garza
Tem 39 anos, nasceu em Los Angeles e atualmente mora em Paris. É redatora editorial e tem se dedicado aos direitos dos estudantes e das empregadas domésticas. Tem na sua pauta a luta contra as opressões de raça e gênero e dirige projetos voltados para os direitos de empregadas domésticas na Aliança Nacional dos Empregados Domésticos. Em uma de suas palestras, disse:
“Se não fosse pelas mulheres negras, não haveria uma estrada de ferro subterrânea, ninguém para fazer campanha contra corpos negros balançando nas árvores como frutas estranhas, não existiriam canções de protesto como as que vinham dos pés, através do útero, pelos pulmões e para fora da mente e boca brilhantes de Nina Simone”.
Alicia Garza
Patrisse Cullors
Aos 37 anos é da Califórnia. Artista e dramaturga, suas principais bandeiras estão no campo do sistema penitenciário e nas políticas do encarceramento em massa da população negra. Assim como Garza, ela também se identifica como uma ativista no movimento Queer e busca romper com os padrões heteronormativos.
Opal Tometi
Tem 35 anos e mora no Brooklyn. De ascendência nigeriana, a escritora tem entre suas bandeiras a seguridade dos direitos de imigrantes de ascendência africana nos Estados Unidos. É escritora e diretora da BAJI – a Aliança Negra por Imigração Justa.
A maneira como as ferramentas da web estão sendo reatualizadas por estas mulheres tem criado um ativismo que vem somar com os movimentos sociais das ruas nos Estados Unidos. Assim, as redes não substituem as ruas, muito pelo contrário, elas se complementam. Há a cobertura em tempo real e a troca de dados nas redes, o escancaramento das ações no nível público de protagonistas que não dependem da cobertura da mídia dita hegemônica, porque produzem suas próprias imagens e representações.
Mensagens para implodir o sistema hegemônico
Hoje, os termos da web tornam as imagens e mensagens virais rapidamente e, por ser entendido como um espaço democrático, tem sido a ferramenta de ativismo nas lutas antirracistas e antissexistas. Se na partilha do sensível, nos espaços de poder, sujeitos negros estão excluídos, estes se encontram no território da margem e fazem dos espaços virtuais uma arena onde imagens e mensagens são produzidas e veiculadas a fim de implodir o sistema hegemônico, criando um outro imaginário social.
Neste sentido que as redes devem ser pensadas: como um agenciamento entre pessoas e máquinas, redes concretas e virtuais. A ferramenta, por si só, se torna poderosa porque há grupos que a manipulam. Jovens negros têm manipulado muito bem este espaço a fim de falar, mesmo a partir das margens, para o mundo. Convocando a luta em uma perspectiva internacionalista e provocando um trabalho de interação das gerações de ativistas. Há um encontro de gerações. Por isso, Angela, que é farol na vida das jovens ativistas que fundaram o black lives matter, endossa o movimento no espaço virtual e é levada pela energia de transformação que só existe nas ruas.
* Angélica Ferrarez de Almeida é doutora em História Política