A ancestralidade das tias do samba

A ancestralidade das tias do samba

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Por Angélica Ferrarez *

“Minha avó foi uma dessas mulheres que mudaram a forma de pensar e agir do povo escravo que veio para o Brasil em navios negreiros”

Com estas palavras Yara da Silva, neta de Tia Carmem do Xibuca, abre seu livro Tia Carmem: negra tradição da Praça Onze um dos poucos registros sobre as tias do samba do final do século XIX que temos em mãos.

Tia Carmem do Xibuca nasceu em 1878 em Amaralina, na Bahia, veio para o Rio de Janeiro indo morar na rua Senador Pompeu, Zona Portuária. Recebeu o apelido de Xibuca após casar-se com Manoel Teixeira, com quem teve 22 filhos. Adepta das religiões de matriz africana, filha do orixá feminino Osun, ela era rezadeira, quituteira e vendia seus doces no tabuleiro na Lapa, Campo de Santana e Praça Tiradentes. Relatam-na como uma mulher muito festeira que saía em vários ranchos carnavalescos, ajudando a fundar alguns deles junto as tias Ciata e Bebiana, por exemplo.

Mas afinal, quem são as tias? Por que algumas são chamadas tias e outras não? De que autoridade se valem estas mulheres para serem conhecidas e reconhecidas enquanto tias?

A ancestralidade

As tias são mulheres mais velhas, em sua maioria, negras, e que se reconhecem e são reconhecidas por serem detentoras de um saber-fazer que remonta a herança africana na cidade. Existe no ser tia algo de místico e religioso, mas também de poder e político, que faz com que elas sejam legítimas a ponto de, segundo Yara da Silva: “mudar a forma de pensar e de agir do povo escravo que veio para o Brasil em navios negreiros…”.

Progenitoras, líderes, rezadeiras, cozinheiras, quitandeiras, mães de santo, sambistas e mães da primeira geração de sambistas da cidade do Rio de Janeiro, estas tias manipulam tantos códigos que chegavam a concorrer com outras formas de organização na cidade. Responsáveis por preparar o quintal do samba, elas eram as chefas de famílias extensas e muitas frentes familiares se formavam a partir do poder de atuação de uma tia.

Muitos de nós já ouvimos falar ou até mesmo conhecemos a obra de Donga, João da Baiana, Pixinguinha, mas não sabemos que todos são filhos das chamadas tias do samba. Tia Amélia do Aragão, Tia Perciliana de Iansã e Tia Raymunda respectivamente foram as matriarcas dos quintais onde estes se lançaram para o samba. Costumo dizer que elas prepararam o quintal para esta primeira geração e mesmo num ambiente hostil onde o samba era criminalizado, “duramente perseguido”, essas mulheres tinham um jogo de negociação com as esferas pública que acabavam respeitando e reconhecendo nelas uma espécie de autoridade.

Tia Eulália (imagem do documentário O Império do Divino)

As tias em Madureira

Saindo do eixo das baianas a experiência das tias ganhou os subúrbios, com Tia Eulália, mineira que chega à comunidade da Serrinha, em Madureira, por volta da década de 30. Outra que chega à mesma época é Vó Maria do Jongo. Com esta historicidade Madureira também entra fortemente no circuito das artes negra da cidade, vindo a abrigar as escolas de samba Império Serrano, de 1947 e a Portela de 1923.

As fundações das escolas de samba também estão ligadas ás tias do samba. O Império Serrano foi fundado por iniciativa de trabalhadores da estiva, Mano Décio, Mano Elói e Mestre Fuleiro, dentre outros, que se reuniam na casa de quem? Tia Eulália.

Outro episódio foi a fundação da Portela, escola de samba em 1923, também no bairro de Madureira. Impulsionada pelo empenho das mães de santo conhecidas no local, foi na casa de tia Ester que a surge o “Baianinhas de Oswaldo Cruz” em 1922, passo mais próximo para o que seria a Portela, em 1923.

Procurem saber quem veio antes

Havia também a Tia Neném, sambista do morro do Salgueiro, nascida ali em 1921. A tia Zezé, nascida em Três Rios em 1923, componente importante da Unidos da Tijuca e tantas outras tias provenientes ou do Vale do Café que enfrentava decadência da sua economia ou da Bahia.

Mesmo sendo vista de forma subalternizada, a cultura popular baseada no samba carioca tem extrema ligação com a presença das tias e estas com a formação da cultura urbana do Rio de Janeiro e sua modernidade. Por isto, quando pular o carnaval procurem saber quem veio antes, quem abriu os caminhos e olhem o reduto com mais atenção, pois a mais velha ao seu lado pode ser uma tia que resiste à ação do tempo e espaço, partilhando de um saber privilegiado no universo do samba, da religiosidade e das memórias afetivas de famílias negras, festejando, sonhando e inspirando toda uma nova geração.

*Angélica Ferrarez – Fala de samba e do que ela quiser…historiadora, apresentadora do Rodadas, pesquisadora da história e memória do samba. Veja outros artigos de Angélica em https://medium.com/@angelferrarez

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