De Angola à Rússia, família negra se surpreende com teste de DNA
Por Ivan Accioly – ivan-accioly@negrxs50mais.com.br
Eles são membros de uma mesma família brasileira distribuídos em diferentes ramos de descendências e gerações. A pessoa mais velha com 68 anos de idade e a mais nova com dez anos. Mantém relações cotidianas e histórias em comum. Todos são autodeclarados negros, o que é ratificado por seus cinco exames de ancestralidades, feitos por meio do DNA. No entanto, a família negra se surpreende com a diversidade e proporções das origens. Entre outras, vai de Angola, Uganda e Camarões, na África; a Rússia, Hungria, Escandinávia e Península Ibérica na Europa; Bengala na Ásia e a difusa Américas. Mas, na média, o percentual de DNA africano é igual ao da população autodeclarada negra no país, 56%.
No total, os cinco membros da família apresentam 18 diferentes possibilidades de origens, que abarcam a África, Europa, América do Sul, América Central e Ásia. São traços presentes na formação de parte de uma pequena família construída ao longo do século XX no Rio de Janeiro.
A coordenadora do projeto DNA Brasil, Lygia da Veiga Pereira, chefe do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), ratifica que o perfil da família é “muito comum” na realidade brasileira. Segundo diz, a miscigenação é uma marca do país. “Nós brasileiros, os nossos genomas, são mosaicos de genomas com ancestralidades de diferentes populações que compuseram a nossa. Então, você vai ter europeu, africano e ameríndio, nativo americano, em diferentes proporções em cada um de nós.”
A pesquisa
O ponto de partida da investigação foi o casal Lúcia da Conceição de Oliveira (nascida em 1918) e Luiz Accioly de Oliveira (1911), que se conheceu nos anos 30, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e teve três filhos, o primeiro em 1937.
Os exames seguiram diferentes ramificações ocorridas ao longo do tempo a partir dos dois. A primeira geração analisada foi a das sobrinhas. Uma sobrinha de Lúcia, Rosely Ribeiro; e uma de Luiz, Regina Helena. A primeira é filha de Alexandrina, irmã de Lúcia. E a segunda, filha de Cícero, irmão de Luiz. No DNA de cada uma, portanto, há parte das histórias genéticas em comum dos ancestrais de Lúcia e Luiz.
Da mesma forma acontece com o membro da geração seguinte analisada, que foi Ivan, neto de Lúcia e Luiz. Nesse caso, já contando com a inclusão dos 50% DNA de Maria, a mãe, casada, com Ivan Accioly (filho de Lúcia e Luiz).
A análise seguinte foi com Carina Accioly, 22 anos, filha de Ivan e bisneta de Lúcia e Luiz. Essa já com a contribuição do DNA da mãe, Débora Souza. E, por último, na geração mais recente, Perlla Oliveira, 10 anos de idade e bisneta de Regina Helena. Ou seja, com contribuições em seu DNA que envolvem os seus pais Patrick (neto de Regina) e Nathália; e seus avós, Patrícia (filha de Regina) e Lincoln.
A ideia foi fazer uma fotografia da família sob o aspecto das miscigenações com partida em um ponto comum e percorrendo as diferentes combinações ocorridas até agora. Não se trata de um estudo de origens com rigor acadêmico. Foram simples exames de DNA feitos pela empresa especializada Meu DNA, a partir da coleta do material nas salivas e com envio pelos Correios.
Quem é quem
Rosely Ribeiro
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Rosely -
Alexandrina, Rosely e Joaquim
Sobrinha de Lúcia, filha de Alexandrina e Joaquim. Alexandrina era irmã de Lúcia. O exame de Rosely revelou 59,7% de origem na Europa, com 54,2% na Península Ibérica e 5,5% na Irlanda. A segunda maior presença foram 36,6% de África, dos quais 18,4% de origem em Angola; 8,5% no Norte da África e 3% na Nigéria. As Américas responderam por 3,8%, com 2,2% na América do Sul e 1,6% na América Central.
Regina Helena
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Antônia -
Regina -
Cícero
É sobrinha de Luiz e filha de Cícero e Antônia. Cícero era irmão de Luiz. O exame de Regina revelou 69,8% de origem na África, com 31,2% em Angola; 31,1% no Norte da África; 3,7% em Serra Leoa; 2,2% na Nigéria e 1,6% em Uganda. A segunda maior presença está nas Américas, com 19,8% na América Central e 4% na América do Sul. A Europa contribui com 6,4%, concentrados na Rússia.
Ivan Accioly
Neto de Lúcia e Luiz e filho de Ivan Accioly (1) e Maria. O exame de Ivan revelou 68,2% de origem na África, sendo 43,5% em Angola; 15,1% no Norte da África; 5,0% em Benim e 4,5% em Uganda. A segunda contribuição é na Europa, com 27,5%. Desses, 18,5% na Península Ibérica e 9% na Hungria. A América Central contribui com 4,3%.
Carina Accioly
Filha de Ivan Accioly e Débora, é bisneta de Lúcia e Luiz. O exame de Carina revelou 49,7% de origem na África, dos quais 20,2% no Norte da África; 19,9% em Angola; 4,7% em Uganda; 3,7% em Benim e 1,2% Cuxitas (Sudão). A presença da Europa é de 47,4%, distribuída em 23,2% de Hungria; 17,9% de Península Ibérica, 3,4% de Escandinávia e 2,9% de Grã Bretanha. A América Central contribui com 2,9%.
Perlla Oliveira
Bisneta de Regina Helena e filha de Patrick e Nathália. Seu exame revelou 58,5% de origem na África, com 36,9% de Angola; 14,8% de Norte da África; 3,5% de Camarões e 3,4% de Nigéria. A Europa contribui com 31,8%, dos quais 18,6% são da Península Ibérica; 8,7% da França e 4,5% da Rússia. A América Central tem 7,8% e a Ásia tem 2%, em Bengala.
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Como são feitos os testes
O processo atual é bem simples. Basta contratar o serviço numa das empresas especializadas e receber pelos Correios um kit de teste. Nesse kit estão um cotonete em um tubo com um pouco de líquido. A pessoa passa o cotonete na bochecha, por dentro da boca, coloca o cotonete dentro do tubo. Depois posta no Correio de volta para a empresa. Aguarda um prazo em torno de 30 dias e recebe o resultado.
Nos testes são identificados os perfis genéticos a partir de comparação – por meio de inteligência artificial – com milhões de outros perfis já cadastrados em diferentes partes do mundo de indivíduos de 88 populações. São feitos, então, cruzamentos para verificação de probabilidades por aproximações. Não se trata de uma pesquisa sobre ancestralidade que vá indicar quem foram os antepassados ou nem mesmo o local exato onde eles viveram, mas indicar a região onde podem ter vivido em função da concentração de outros DNAs no mesmo local.
De acordo com Iuri Ventura, biólogo da Meu DNA, marca brasileira do centro de diagnósticos genéticos Mendelics e onde os testes foram feitos, é possível analisar os DNAs de até oito gerações, ou seja, os trisavós dos bisavós. O que seria, atualmente, alguém que nasceu no início do século XIX, levando em consideração uma média de 25 anos entre cada geração.
99,9% do genoma são iguais em todos os humanos
Os pesquisadores lembram que a parcela analisada para apontar a ancestralidade é ínfima, pois 99,9% do genoma são iguais em todos os seres humanos. Vale lembrar também que a cada geração se reduz em 50% a herança genética do antepassado. Assim, uma pessoa recebe 50% do DNA da mãe e repassa 25% para o filho, que passará 12,5%, depois 6,25% até chegar ao limite da oitava geração. Há cerca de 5% de chance de herdar zero DNA de um quinto bisavô.
Além disso, é importante lembrar que cada pai ou mãe passam fragmentos aleatórios do genoma para cada um dos filhos. Então, há possibilidade destes receberem porcentagens diferentes de tipos de ancestralidades. Isso significa que os testes de DNA de irmãos podem indicar diferentes percentuais de ancestralidade. “As ancestralidades dos pais vão se misturar nos filhos em proporções diferentes, com isso pode haver variações”, diz Lygia Pereira.
Testes têm validade científica e são confiáveis
Surgidos nos EUA em meados dos anos 80, os testes já foram bem caros. Os interessados tinham que pagar algo em torno de US$10mil, num processo que era lento e podia levar meses. A partir da conclusão do sequenciamento do genoma, em 2003, e posteriormente o emprego da inteligência artificial, a tecnologia expandiu e hoje é tão popular, que é possível comprá-los por US$ 75 até em farmácias nos EUA. Com a tecnologia atual são analisados cerca de 700 000 pontos do DNA, que equivale a 0,01% do código genético da pessoa.
A professora Lygia classifica os testes deste tipo como “recreativos”, mas ressalta que não é de forma pejorativa e atesta a validade científica deles. “Têm super validade científica, dependendo, de onde for feito, de fato, falam de onde a gente veio. São muito sérios e bem confiáveis.”
Famílias brasileiras são das mais miscigenadas no mundo
Segundo Lygia Pereira, o perfil das famílias brasileiras difere das famílias dos demais países pelo alto grau de miscigenação. “Se não é a mais, é uma das mais miscigenadas do mundo e, daí, o grande interesse da gente por estudar essa população”.
Ela lembra que no Brasil é possível encontrar pessoas com ancestralidade 100% africana ou 100% europeia, porém difícil alguém com 100% indígena. “Mas a maioria está entre os extremos. Há um contínuo de mistura de diferentes frações destas três ancestralidades.” Conhecer melhor esta população é parte do projeto DNA do Brasil.
Ancestralidade dentro do esperado
A pesquisadora Tábita Hünemeier, professora do departamento de Genética de Biologia Evolutiva da USP (Universidade de São Paulo) analisou o quadro de percentuais de ancestralidade da família e disse que as estimativas, em geral, estão dentro do esperado. Fez apenas uma ressalva quanto ao alto percentual de norte-africano. “Se isso significa norte do Saara, não é o esperado”
Sobre o alto percentual de ancestralidade indígena de Regina Helena, ela credita à mãe, Antônia, “que deveria ter mais de 40% de ancestralidade indígena.” Ainda sobre a Regina e os seus 6.4% de ancestralidade russa, disse: “Há muitos russos, e alemães descendentes de russos, além de ciganos de origem russa também que fugiram para ao Brasil”.
Outro percentual que mereceu atenção de Tábita foram os 23,2% de Hungria revelados para Carina: “Ela deve ter herdado a ancestralidade húngara da mãe, provavelmente, e uma parte pequena do pai, que tem nove por cento da origem. Temos que lembrar que vieram cerca de 100 mil húngaros para o Brasil, e também existem mais de 300 mil ciganos de origem húngara no país hoje.”
O DNA de cada um é único
O DNA de cada um de nós é único. Mas pessoas da mesma população compartilham “marcadores genéticos.” Para definir quais são eles, os cientistas analisam os DNAs de pessoas cujos pais e avós nasceram todos no mesmo território e passaram um período longo dentro dele. A partir desses registros se compara com quais populações o DNA em avaliação mais se assemelha.
Essas análises de ancestralidade revelam informações sobre migrações históricas e semelhanças genéticas entre pessoas que conviveram em regiões próximas. A cada nova descoberta das áreas de genética, história e antropologia, os bancos de dados genéticos são atualizados.
Para entender os testes é importante lembrar que as populações pelo mundo estão em contínua migração. Nesse século XXI o número de pessoas em circulação pelo mundo é calculado em cerca de 272 milhões, de acordo com o Relatório de Migração Global 2020, divulgado pela Organização Internacional para Migrações, OIM. Dois terços delas são consideradas migrantes de mão-de-obra.
Ou seja, a conexão genética entre os povos não está restrita às fronteiras que dividem os países. O “agrupamento genético” é uma região que pode conter várias nacionalidades.
Esse processo é permanente na história do mundo. As migrações e a proximidade geográfica contribuíram para o compartilhamento genético entre povos. A origem península ibérica, comum no Brasil, por exemplo, não consegue distinguir entre portugueses e espanhóis, pois, apesar de diferentes histórias e culturas, apresentam grande similaridade genética.
Como o DNA é transmitido para os filhos e netos
Amy Williams, professora associada de Biologia Computacional na Cornell University, explica que os cromossomos nas células germinativas não são simplesmente uma cópia exata de um dos 23 cromossomos que uma pessoa possui, mas são formados por recombinação.
Ela diz que todos temos 23 pares de cromossomos e herdamos um conjunto de 23 do pai e outro da mãe. Esses cromossomos são fisicamente pequenos, com todos os 46 contidos nas células do nosso corpo, mas contêm todo o DNA.
Espermatozoides e óvulos contêm apenas uma cópia de cada cromossomo, enquanto a maioria das células humanas carrega 23 pares de cromossomos. Isso ocorre para que, assim que essas células se fundam, o óvulo fertilizado resultante tenha 23 pares de cromossomos. Por isso, ela diz que, “quando se trata de hereditariedade, talvez os tipos de células mais importantes sejam as células germinativas:”
Há uma média de 36,4 recombinações de cromossomos por geração.
Uma visualização ajuda a entender melhor. A imagem com quadrados e círculos mostra como o DNA de um casal pode ser transmitido para dois filhos e três netos.
Os círculos representam as mulheres, os quadrados representam os homens e as barras verticais abaixo dessas formas fornecem uma representação colorida do par de cromossomos dessa pessoa. Na parte superior, o homem tem um cromossomo escuro e um azul claro, e a mulher, um cromossomo vermelho e um rosa. Logo abaixo deles estão seus dois filhos, ambos herdaram um cromossomo de cada pai. Por causa da recombinação, os cromossomos das crianças são multicoloridos, contendo cópias de DNA dos dois cromossomos da mãe e dos cromossomos do pai. Nesse caso, as duas crianças receberam uma cópia do cromossomo azul escuro do pai na parte superior e ambas também receberam uma certa quantidade do cromossomo azul claro.
Da mesma forma, a mãe transmitiu um cromossomo para cada filho contendo algumas partes do cromossomo vermelho e outras do cromossomo rosa. As barras ficam ainda mais coloridas na próxima geração para as formas na parte inferior, porque esses netos herdaram um cromossomo que é recombinado dos cromossomos de seus pais. Isso significa que seus cromossomos podem conter pedaços de todos os quatro cromossomos de seus avós. E, de fato, cópias do DNA de todos os quatro cromossomos foram transmitidas a pelo menos um neto.
Considerando todos os cromossomos, uma célula germinativa contém uma média de 36,4 recombinações. Ou seja, há uma média de 36,4 recombinações por geração.
Parentes podem não compartilhar nenhum segmento de IBD
Esse processo, segundo o trabalho de Amy Willians, leva ao fato de parentes próximos, como dois irmãos (de pai e mãe), uma tia e um sobrinho, ou um avô e um neto, sempre compartilharam segmentos de IBD (segmentos idênticos por descendência). Já parentes mais distantes podem não compartilhar nenhum segmento de IBD, mas não deixam de ser parentes. Acontece que com as recombinações e o distanciamento diminuem as chances de compartilhar segmentos. E isso ocorre, mesmo que raramente, com alguns primos de segundo grau.
A família Oliveira e as origens ancestrais: os africanos
A família representa parte dos cerca de 5 milhões de africanos sequestrados e traficados para serem escravizados no Brasil. A origem principal identificada na África, Angola, estava no primeiro grupo de países que teve sua população arrancada para atravessar o Atlântico, ainda em 1530, junto com a Guiné e o Congo.
Segundo a base de dados americana Atlantic Slave Trade, entre 1501 e 1866 foram tiradas de Angola quase 5,7 milhões de pessoas para serem escravizadas. O estudo diz que antes de 1650 as viagens, na maioria das vezes, se originavam na Senegâmbia (atuais Senegal e Gâmbia) e na África Centro-Ocidental (em locais agora conhecidos como República Democrática do Congo e Angola).
Embora a África Centro-Ocidental tenha permanecido a principal região de embarque durante todo o período de comércio de escravizados (de 1650 a 1850), essas viagens se originaram com frequência crescente nos portos do golfo de Benin e do golfo de Biafra, em locais hoje conhecidos como Benin, Nigéria, Camarões e Gabão.
Registros com mais de 36 mil viagens pelo Atlântico
O banco de dados Slave Voyages contém uma coleção de registros com informações sobre mais de 36 mil viagens pelo Atlântico entre 1492 e o início do século XIX. Nele estão mais de cem variáveis possíveis para cada viagem, incluindo datas da viagem, portos de desembarque e embarque, informações da tripulação e resultados da viagem.
O periódico American Journal of Human Genetics publicou um estudo com base em amostras de DNA de 50,2mil pessoas das Américas e África. No trabalho pesquisadores da 23andMe (a principal empresa dos EUA que atua no campo dos testes de DNA) e da Universidade de Leicester (Reino Unido) correlacionam geneticamente os descendentes de escravizados e os documentos disponíveis sobre o tráfico de pessoas entre os séculos XVI e XIX (1515 e 1865).
De acordo com este trabalho, quase 2 milhões, entre mais de 12,5 milhões de homens, mulheres e crianças arrancadas da África para as Américas, chegaram ao Rio de Janeiro.
Origens fora dos padrões podem fruto de tráfico interno
O estudo mostra uma maioria de conexões genéticas com as populações do centro-oeste da África, particularmente a região do Congo. O traçado das rotas mostra que os afro-brasileiros do Nordeste têm ancestralidade tanto do Congo, quanto da região da Nigéria. Já os do Sudeste têm ancestralidade principalmente congolesa, segundo o que a pesquisadora Sandra Beleza, da Universidade de Leicester, afirmou à BBC.
Na família Oliveira aparecem ascendência de DNA das regiões da Nigéria e de Benin, o que, segundo o estudo, fugiria dos padrões, pois os registros do tráfico indicam baixo fluxo entre essas regiões. Normalmente os escravizados dessas regiões eram levados para o Caribe.
A hipótese levantada seria a de existência de tráfico interno entre as regiões das américas, quando a travessia a partir da África já sofria proibições. “Essas viagens teriam espalhado a ancestralidade comum no Caribe britânico para outras regiões das Américas que não estavam em comércio direto com regiões específicas da África”, diz o estudo.
No Brasil, movimentação semelhante teria ocorrido com migração interna da população negra do Nordeste ao Sudeste e Centro-Oeste. Em geral, segundo o estudo, a análise genética mostra pouca variação da ancestralidade africana entre as diferentes partes das Américas. Clique aqui e ouça o podcast Negrxs50mais sobre África.
A família Oliveira e as origens ancestrais: os europeus
Invadido e ocupado por Portugal desde o século XVI, o Brasil recebeu contingentes de portugueses ao longo dos séculos com regularidade, mas baixa intensidade. Até o século XVIII são estimados em, no máximo, 700mil. No início do século XIX, com a vinda da família real, em 1808, e a transformação do país em sede da coroa, há um incremento. Mais adiante, entre 1840 e 1914 outro grande contingente.
Segundo o censo nacional de 1920, 77,34% dos imigrantes no Brasil eram provenientes de apenas três países: Itália (35,66%), Portugal (27,69%) e Espanha (13,99%), seguidos de alemães (3,38%) e japoneses (1,79%). Os alemães começaram a chegar em 1824, os poloneses em 1869, os italianos em 1875 e os ucranianos em 1891. Também chegaram grupos menores de outras partes da Europa.
Esse quadro é reflexo do pós abolição da escravização, quando os dirigentes brasileiros optaram pela política do branqueamento da população e o incentivo à imigração europeia. Tal ação resultou no abandono à própria sorte dos ex-escravizados e na chegada de elevados contingentes europeus. Entre 1884 e 1959 entraram no Brasil quase cinco milhões de imigrantes. Nesse período, a liderança é de italianos, com 1,5 milhões, seguidos por portugueses, com 1,3milhões.
Objetivo de branqueamento e incentivo à imigração europeia
Antes, entre 1820 e 1876, 350.117 imigrantes entraram no país. Destes, 45,73% eram portugueses, 35,74% de “outras nacionalidades”, 12,97% alemães, enquanto os italianos e espanhóis juntos não chegaram a 6%.
A intenção de “branquear” a população perpassou todo o século XIX e boa parte do XX e coincidiu com um período de crescimento acelerado da população mundial, principalmente entre 1800 e 1914. O excedente da população europeia se espalhou pelo mundo, principalmente pela América do Norte, Austália, Sibéria e América Latina.
Os alemães emigraram para o Brasil, os EUA, Austrália e África Austral. Além deles, escandinavos, britânicos e italianos emigraram para os EUA, América Latina e para outras regiões da Europa. No início do século XX, aconteceu a emigração da Europa Central e Oriental (austro-húngaros, russos e polacos). Foi o período de maior fluxo migratório europeu dos últimos 300 anos. No início do século XX, há a chegada de japoneses e sírio-libaneses ao Brasil.
Nacionais e imigrantes na cidade do Rio de Janeiro, em 1906
Nacionalidades | Número | Percentagem da população carioca |
Brasileiros | 600.928 | 74% |
Portugueses | 133.393 | 16,4% |
Italianos | 25.557 | 3,1% |
Espanhóis | 20.699 | 2,5% |
Franceses | 3.474 | 0,42% |
Alemães | 2.575 | 0,32% |
Ingleses | 1.671 | 0,20% |
Outros | 23.146 | 2,85% |
Imigração ibérica
A Península Ibérica localiza-se no sudoeste europeu e sua maior parte é formada pelos territórios da Espanha e de Portugal, além de Andorra, Gibraltar e uma pequena área da França. Os dois países ibéricos têm variantes genéticas, que os distinguem dos vizinhos europeus. A composição genética é bastante diversa e foi influenciada por diferentes povos que se estabeleceram na região ao longo da história. Entre eles os celtas, fenícios, gregos, romanos, germânicos e mouros. Os primeiros humanos começaram a habitar a região há cerca de 35 mil anos.
Diversas populações espalhadas pelo mundo têm herança genética ibérica, já que exploradores de Portugal e Espanha colonizaram diversas regiões. Além dos países da América, se estabeleceram em territórios na África (como Angola, Cabo Verde e Moçambique) e Ásia (Filipinas, Índia e Macau).
Imigração russa
A diáspora de russos durante a perseguição religiosa do século XIX, a Guerra Civil russa e a Segunda Guerra Mundial levaram emigrantes para diversos países da Ásia, Europa e Américas.
Estima-se que cerca de 200 mil russos e descendentes vivam atualmente no Brasil.
Imigração húngara
A queda do Império Austro-Húngaro levou a instabilidades econômicas e os incentivos do governo brasileiro estimularam o estabelecimento de muitas famílias no Sul e Sudeste do Brasil no final do século XIX e início do século XX.
A segunda leva de imigração húngara para o Brasil veio após a Primeira Guerra Mundial, devido à fragmentação do território húngaro no Tratado de Paz de Trianon. Chegaram com diferentes passaportes, originários de seus novos governos: iugoslavos, romenos, tchecoslováquios, austríacos e húngaros.
Estima-se que tenham entrado no Brasil cerca de 60 mil húngaros na segunda onda migratória, somados os passaportes das cinco nacionalidades.
A família Oliveira e as origens ancestrais: os nativos americanos
O Brasil está no território dos nativos americanos, mas, depois dos massacres que as populações originais sofreram com a colonização, a invisibilização dos povos prosseguiu. O apagamento levou à situação atual com a carência de genomas de referência que permitam a alimentação dos bancos de dados, que são as bases das pesquisas das empresas especializadas nos estudos de ancestralidade. O projeto DNA do Brasil tem entre suas metas suprir essa carência que afeta toda a América Latina.
Entre as populações nativas da América, que são pouco estudadas do ponto de vista genético, os nativos do Brasil são o grupo menos estudado, segundo Tábita Hünemeier (USP). A partir dos estudos que envolvem genomas antigos e atuais que estão em andamento, ela crê que em poucos anos haverá repostas mais robustas sobre as origens das populações nativas atuais, e quais os processos evolutivos as moldaram ao longo dos últimos 25 mil anos.
Mongóis e siberianos na origem da população nativa das Américas
Entre as hipóteses para a povoação das Américas está a de que entre há 14 e 12 mil anos mongóis e siberianos, provenientes da Ásia, atravessaram o estreito de Bering rumo ao continente. Naquele período o canal que liga a Rússia e o Alasca teria tido uma faixa de terra que foi exposta pela última glaciação. A passagem, então, foi utilizada.
Segundo os especialistas da Meu DNA, a análise genética de antigos fósseis possibilita entender a migração desses povos pela América. Acredita-se que os asiáticos tenham atravessado o estreito de Bering em três levas. A primeira foi em direção ao sul, pela costa do Oceano Pacífico; a segunda seguiu pela costa do Ártico até a Groenlândia; e a terceira se dirigiu às Montanhas Rochosas na América do Norte.
A primeira leva deixou povoações pelo caminho, desde territórios atuais dos Estados Unidos até a Terra do Fogo, no sul do continente americano. Como sugerem pesquisas genéticas, segundo o Meu DNA, houve contatos entre os povos migratórios das três levas.
Genocídio, escravização e invisibilidade
No século XIX estima-se que havia mais de 25 milhões de indígenas na América do Norte, pertencentes a diferentes grupos étnicos, que falavam dois mil idiomas diferentes. Apaches, cherokees, navajos e comanches são exemplos desses grupos. Ao final, restaram menos de 10% do total da população original.
Em 1500, cerca de 3 milhões de índios ocupavam o atual território brasileiro, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desses, aproximadamente 900 mil viviam no litoral. A população de Portugal era de 1,1milhão de pessoas, segundo o “numeramento geral do Reino”, feito a mando de D.João III. Hoje os índios brasileiros são 800 mil.
Na América Central o extermínio atingiu povos como os maias, zapotecas e astecas, entre outros. Na América do Sul os incas, mapuches e fueguinos, guaranis, tamoios, tabajaras e potiguaras, por exemplo.
Várias dessas civilizações exterminadas pelos exploradores europeus (espanhóis, portugueses, ingleses e franceses principalmente) a partir do século XVI, alcançaram desenvolvimentos expressivos. Contavam com língua escrita, conhecimentos avançados de cálculos matemáticos (invenção de casas decimais e noção do valor zero, por exemplo), sistemas astronômicos, calendários anuais e arquitetura complexa, com a construção de cidades, estradas, palácios e centros religiosos.
Os nativos americanos no Brasil
De acordo com a Funai, há 274 línguas e mais de 300 etnias entre os indígenas brasileiros. Uma parcela de 17,5% não fala português. Segundo a Meu DNA, apesar de terem culturas e línguas próprias de cada povo, a origem em comum fez com que diversos marcadores genéticos fossem compartilhados entre eles. No entanto, alerta, que o intenso compartilhamento genético com europeus e africanos durante a época da colonização pode interferir na precisão de análise desses marcadores e levar a uma sub-representação, mesmo se houver um registro familiar que mostre ascendência nativa.
Atualmente, a maioria das etnias indígenas brasileiras é agrupada de acordo com famílias e troncos linguísticos, como, por exemplo, o tupi e o macro-jê. Acredita-se que os 800 mil índios indicados pelo IBGE no país possam estar subestimados. Os números não incluem os povos isolados ou aqueles que desconhecem a sua origem.
Dos grupos indígenas brasileiros, o povo tikuna é o que tem maior número de representantes, com 35 mil habitantes. Os guaranis kaiowás, no Mato Grosso, têm 30 mil pessoas e os kaingang, da região Sul do Brasil, cerca de 25 mil.
Apenas três grupos Tupis vivos descendem dos povos que habitavam o Brasil em 1500
Uma análise genética publicada na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) mostra que os tupiniquins que hoje vivem na região de Aracruz no Espírito Santo se miscigenaram com descendentes de europeus e africanos. Hoje, ao lado dos tupinambá, da Bahia, e dos potiguara, da Paraíba são os únicos representantes vivos dos povos tupis que habitavam o litoral em 1500.
A geneticista Tábita Hünemeier e sua equipe no Instituto de Biociências da USP confrontaram o material genético dos indígenas do Espírito Santo com o de outras etnias brasileiras e verificaram que, em média, 51% do DNA dos tupiniquim é de origem nativa americana (26% são de origem europeia e 23% africana). Entre os guarani-mbyá, que nos anos 1960 migraram do Rio Grande do Sul para Aracruz, essa proporção do material genético indígena é mais alta. Eles têm, em média, 77,3% de DNA nativo americano, 15,6% europeu e 7,1% africano. Outras três etnias estudadas em detalhe (Wajãpi, Parakanã e Gavião) não têm sinais de miscigenação com europeus e africanos.
A família Oliveira e as origens ancestrais: a Ásia
A imigração de asiáticos para o Brasil tem diferentes origens. Da Ásia Oriental, vieram os japoneses no início do século XX. Entre 1908 e a década de 1950, mais de 250 mil chegaram ao país. Atualmente a estimativa é de 1,5milhão de descendentes. Os chineses também vieram em grupos menores desde o período colonial. Mais recentemente grupos de coreanos, taiwaneses e vietnamitas também chegaram ao país.
Do sudoeste da Ásia, no Oriente Médio, vieram, no fim do século XIX, os libaneses e sírios. Do sul do continente os indianos, principalmente a partir da década de 1960.
Bengala
É uma região geopolítica localizada na parte oriental do subcontinente indiano no sul da Ásia e ocupada por humanos a partir de há 20 mil anos. Tem uma rica vida cultural e histórica. Em 1947, com o fim da exploração britânica oficial, foi dividida. A parte oriental ficou conhecida como Paquistão Oriental e a ocidental virou Bengala Ocidental, mas continuou como um estado indiano, onde está a famosa Bangladesh.
Legislação
Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira proíbe o uso de informações genéticas para obtenção de vantagem financeira. É importante que os interessados invistam um tempo para ler as condições de contratação dos serviços das empresas. Elas publicam em seus sites. É fundamental avaliar quais são os termos de uso e a política de privacidade adotados pela companhia que ficará com seu material. Fique atento a questões como as condições de armazenamento dos dados e a quem terá acesso. Observe também os prazos de guarda, assim como possibilidades de compartilhamentos e trocas de informações com possíveis empresas parceiras, por exemplo.
Os testes de ancestralidade genética diminuem o racismo?
A pergunta que abre esse bloco é de um artigo da pesquisadora Tábita Hünemeier publicada no blog Darwinianas. Seguem dois parágrafos da resposta. Clique aqui e leia o artigo completo.
“Por outro lado, existe um aspecto relativo aos resultados de ancestralidade que é fascinante e engrandecedor. Em sociedades como a nossa, na qual a escravidão persistiu por quatro séculos, trazendo compulsoriamente 4 milhões de africanos para nosso país, sem documentos de entrada e com os poucos registros queimados após a abolição, com o objetivo de apagar esta mácula de nossa história, os testes de ancestralidade são a única maneira de devolver aos afro-brasileiros um pouco da sua história. Com o refinamento étnico-geográfico dos testes atuais , é possível aferir a origem em nível muito detalhado, resgatando o passado queimado pelo governo.
A genética evolutiva humana pode ser uma ferramenta eficiente para a diminuição do racismo de nossa sociedade, mas o caminho provavelmente não será por meio de uma popularização dos testes de ancestralidade, e sim pelo ensino de evolução e diversificação humana. A diminuição do racismo se dará como uma consequência natural do entendimento da história do Homo sapiens, desde seu surgimento na África, diversificação, e migração para os demais continentes. Europeus, asiáticos e nativos americanos nada mais são do que um pequeno ramo da população africana que deixou o continente africano muito recentemente para habitar novos ecossistemas.”
- Fontes: Grandes Fluxos Migratórios Europeus do Século XIX in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-11-25 23:16:25]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/$grandes-fluxos-migratorios-europeus-do
- Fonte: Amy Williams é professora associada de Biologia Computacional na Cornell University.- https://hapi-dna.org/
- Mapa de Região de Bengala
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Imagens: 1 a 7 – acervos da família; 9, 10 e 26 – USP; 14 a 19 e 21 a 25 – Meu DNA; 31 e 32 – Funai; destaque- montagem com 1343024 por Pixabay