Empresária diz como enfrenta o racismo e machismo em seu restaurante

Empresária diz como enfrenta o racismo e machismo em seu restaurante

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“O que é mais complicado é o racismo, que é imperdoável. Ele dói muito. O machismo é grave, mas a gente consegue chutar”

Suzi Clementino – Restaurante I Piatti

Por Ivan Accioly – ivan-accioly@negrxs50mais.com.br

Há dez anos ela resolveu sair dos bastidores e ser uma das caras do seu restaurante. Junto com as tarefas administrativas e de produção passou à linha de frente no atendimento aos clientes. “Fui para a portaria receber as pessoas. Decidi que gostem ou não de um corpo preto, têm que me engolir. Têm que respeitar e se acostumar a chegar no restaurante de comidas italiana e japonesa e encontrarem como dona uma mulher negra.” O depoimento é de Suzi Clementino, 56 anos, sócia do tradicional “I Piatti”, que funciona há 33 anos em Botafogo, na Zona Sul do Rio e de onde ela enfrenta e supera ao longo do tempo o racismo e o machismo.

Até chegar a ter esta postura, no entanto, Suzimar, filha de Francisco dos Santos e Josefa Clementina, enfrentou muitas situações que classifica entre delicadas e conflituosas e que a fizeram adquirir uma espécie de camada de autoproteção. Seja na relação com clientes, funcionários, fornecedores ou com os próprios sócios. “Nada é fácil. A tendência é não respeitarem a sua posição, o seu conhecimento. As equipes dos restaurantes são extremamente machistas e, em grande parte, racistas. Preferem obedecer a um homem do que a uma mulher. Nós temos que ter um posicionamento com mais firmeza. É muito cansativo, pois nem sempre queremos assumir uma postura que não seja mais relaxada, mas é necessário. Pior ainda no meu caso, que sou mulher e negra.”

Aprendendo a superar racismo e machismo 

Suzi diz que aprendeu a conversar muito com a equipe e pontuar questões como o machismo e o racismo. Mas, ainda assim, é obrigada todo o tempo a ter uma voz imperativa. “Não posso chegar e pedir algo com naturalidade, pois entra num ouvido e sai pelo outro. Tenho sempre que ser exigente e mandar fazer as coisas. Isso não é normal.”

Essa realidade impõe também um distanciamento maior da equipe, o que ela percebe com relação aos dois sócios homens. “Não posso fazer uma brincadeira, pois logo é confundida com intimidade e há limites entre as coisas.” Mas se engana quem pensa que os preconceitos vêm apenas dos empregados brancos. “Busco sempre uma equipe que tenha diversidade, com brancos e negros trabalhando juntos. E algo perceptível é que os empregados negros não me vêm como a dona do negócio, mas como uma amiguinha à qual também não têm que prestar contas. É muito trabalhoso e me exige ser antinatural e forçar a criação de barreiras.”

Empresária desde 1984, Suzi aprendeu a superar os racistas e machistas que encontrou pelo caminho. “Sempre fui muito focada e tinha objetivos a cumprir, com isso traçava uma meta e passava por cima dos preconceitos. Não dava ouvidos ou atenção para o que achavam de mim ou diziam. Eu ia em frente.” Essa postura, afirma, adquiriu por orientação do pai, Seu Francisco, que dizia aos seis filhos para sempre estudarem e não abaixarem a cabeça para ninguém.

Foi assim que ainda estudante de direito na Universidade Santa Úrsula, Suzi comprou a confecção “Crizzia” no bairro de Ipanema. Ela tinha experiência no setor, pois adolescente e no ensino médio foi trabalhar na Design Neuza Maria Confecção. Lá chegou à gerência. “Sempre tive tino comercial. Quando tinha onze ou doze anos peguei uma cortina grossa que meu pai, gerente de um estacionamento no Centro do Rio, ganhou e cortei. Fiz várias mochilas e levei para vender na escola.”

Já advogada voltou à faculdade pela gastronomia

A confecção de Ipanema era uma pronta entrega e estava sendo passada adiante por uma conhecida. Suzi pegou dinheiro emprestado com um tio e convenceu um amigo a ser sócio. Cerca de três anos depois venderam o negócio e compraram o bar. O amigo/sócio, Dror Niv, virou marido.

Formada em direito, percebeu que precisava ampliar os conhecimentos para gerenciar um bar. Voltou para a faculdade e cursou gastronomia na Estácio de Sá. A transformação do bar inicial para o I Piatti ocorreu com a chegada do terceiro sócio, o cearense José Wilson. “Ninguém era italiano, mas o Zé tinha sido gerente do La Mole por muitos anos e nos propôs uma adaptação ao mesmo estilo. Concordamos, fizemos um italiano com pegada mais brasileira, com melhorias diversas e estamos aqui até hoje.”

Já os pratos japoneses vieram décadas depois. Às vezes, para variar e conhecer novos espaços, os sócios saiam para almoçar e acabaram frequentadores de um restaurante japonês. Gostaram da experiência, contrataram um especialista em culinária japonesa e ocuparam o segundo dos três andares da casa onde funciona o negócio.

As operações, explica Suzi, são separadas em duas equipes, pois as cozinhas italiana e japonesas são bem diversas. “O pessoal da produção, os insumos, os talheres, pratos, equipamentos em geral, estoque. Tudo é separado.”

Essa opção pelas cozinhas italiana e japonesa é outra fonte permanente das cobranças racializadas que Suzi recebe, pois sempre querem exigir dela um compromisso com raízes africanas. “É o tempo todo e por todos os lados. Os negros me cobram, os brancos e até os amarelos. Na concepção pré-formada, se eu sou negra só posso trabalhar com comida baiana ou afro-brasileira em geral. Já cansei de ouvir que negro combina com vatapá, acarajé, feijoada e por aí vai.”

Decepção ao encontrarem uma mulher negra

Ela diz que é comum conversar com algum cliente que faz reserva por telefone e combinar de ser procurada por este quando chegar ao restaurante. Nesse momento observa as caras de incredulidade e, por vezes, decepção ao se depararem com uma negra. “Já ouvi muitas vezes frases como ‘Nossa, eu nunca imaginei encontrar uma pessoa assim….’. Ou algumas que ficam desconcertadas e se enrolam, gaguejam etc. Já teve uma que falou algo como ‘a gente nem pode falar nada, porque pode ser processada…Hoje em dia tem que tomar cuidado com o que fala…’ Querendo dizer que não comentaria a surpresa para não ter risco.

Muitos fornecedores também já chegaram ao restaurante querendo falar com o “dono”. “Lembro de uma mulher que me viu e disse que queria falar com o dono e não com o gerente”. Outro problema que enfrentou foram as tentativas de desqualificar seu trabalho, dizendo que só chegou a dona do restaurante porque casou com um judeu. “Pessoas que não conhecem minha história, nossa história. Sempre foi uma batalha. Tinha dia que eu chegava em casa cansada e verdadeiramente arrasada.”

Quem tem que se envergonhar é o racista

Mas o racismo não vem apenas dos clientes, empregados e fornecedores. Os sócios de três década, apesar de se policiarem, muitas vezes também naturalizam o preconceito. Em todos os casos Suzi diz que agora se sente forte para dar um tratamento de choque e chamar à realidade de imediato. “Não deixo mais passar nada. Percebi, me ofendi, falo na hora e não quero mais saber de nada. Não posso desistir, é minha responsabilidade ficar firme e, se for necessário, dar uma de louca. Se não fizer, se ficar travada, sou eu quem vai ficar mal e estou convencida de que se alguém tem que ficar envergonhado é quem tá praticando o racismo, não sou eu. São situações que vivemos todo dia. Sei que vai demorar, mas nada muda por si só. Temos que desnormalizar o que era ‘normal’.”

Essa é uma postura que pretende levar adiante e, se possível, passar para os quatro netos que tem dos dois filhos, Amir (28 anos) e Daniela (31), que foram criados em meio aos compromissos da mãe e pai empresários. “Como disse eu era muito focada no negócio e acho que tinha que ter dado mais tempo a eles quando eram novinhos. Mas, para fazer o restaurante funcionar, eu os deixava na creche/escola em tempo integral. O Amir desde os seis meses e a Daniela a partir de um ano de idade. Disso eu me arrependo. Mesmo quando passei um ano inteiro com a Daniela, logo que ela nasceu, eu não parei. Inventei de fazer doces de sobremesa para o restaurante, então me enfiava na cozinha.”

Os netos Max, de três anos e Ben, de um ano e dois meses são filhos de Daniela e vivem na Austrália. Já Ruthléa, três anos e Noa Youssef, um ano e seis meses, vivem com Amir em Israel.

Em meio à crise e novos planos

Em meio à pandemia e com uma queda de 80% no movimento do restaurante que está operando apenas com entregas, Suzi traça planos. Em mente está a criação de um centro social dedicado ao ensino de gastronomia no distrito de Piabetá, no município de Magé, onde nasceu e a família (foto) mantém um sítio.

Essa atividade se somará ações como a presença no pólo gastronômico de Botafogo, da qual é uma das fundadoras e mentora;  ao trabalho social realizado na época de pleno funcionamentos da UPP com os moradores da favela Santa Marta, com cursos de gastronomia e enologia, aos cargos de conselheira no Conselho Estadual dos Direitos dos Negros (Cedine) e no Cevenb – Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Brasil.

Fotos: arquivo pessoal

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