A poesia de Julie Lua, da Conto de Fadas Periférico
Escritora, poeta, mãe solo, mulher preta periférica, empreendedora com impacto social na Conto de Fadas Periférico, Julie lua, é a entrevistada de Nego Panda neste Escrita Preta. Aos 34 anos está engajada no processo de empoderamento de crianças em uma educação antirracista e anti machista. Participante das antologias “Elas e as letras diversidade e resistência” e “Erupções Feministas Negras”, do coletivo Louva Deusas, Gotas de Vinagre vol 3 e Sarau das Ostras 10 anos transformando versos em pérolas. Autora dos livros solos Contos da Lua e Mulher do fim do mundo.
Carolina musa
Eu escrevo porque dói Eu escrevo porque estou de saco cheio Eu não escrevo pra você ler Eu escrevo pra desabafar Pra não gritar Pra parar de chorar Escrevo pra resistir Escrevo como Carolina Um diário da favela Das cenas cotidianas Da dor normalizada Escrevo e vocês aplaudem minha dor quando declamo Gostam da miséria se alimentam de sofrimento Por que a dor do outro é algo bonito Mas eu não escrevo pra vocês Escrevo pra outras mães Que estão preocupadas se vão ter mistura no jantar Escrevo porque tenho ódio dos políticos Que nesse país promovem A miséria de mulheres e crianças Escrever é dizer que estou viva E que a cada rima, a cada escrita Honro as minhas!
Conte um pouco de como você se interessou pela literatura. Como foi se ver e se denominar escritora?
Sempre gostei de ler, desde a adolescência preferia ganhar um livro do que qualquer outro tipo de presente, mas não me identificava nas histórias vividas pelas personagens. Em 2016 comecei a escrever como forma de desabafo das dores cotidianas, tudo aquilo eu não conseguia gritar se tornava poesia, porém não me via escritora ou poeta. Esse processo de reconhecimento se deu ao longo dos anos, através de incentivo de amigos e de meu companheiro. Em 2019 lancei meu primeiro livro. Um romance, o que me fez me apropriar da terminologia escritora da qual hoje tenho muito orgulho. Minha escrita é simples e retrata a vivência de uma mulher mãe solo periférica.
Vejo muitas pessoas que falam que a arte não tem nada a ver com a política. Como você enxerga isso?
A arte sem função revolucionária, pra mim perde a função. Vejo a arte como contestadora capaz de indagar a ineficiência do estado, apontar as mazelas de um sistema racista e machista. Evidencio nas minhas poesias as minhas dores causadas por um sistema opressor e renvindico direitos através da escrita. Escrever é um ato revolucionário e libertador!
Como é a caminhada de uma mulher preta, periférica e mãe solo, no universo da poesia?
Por vezes solitária. Muitas poesias são sobre minhas dores em um momento de solidão. No entanto, a poesia tem essa capacidade de nos conectar. Quando uma mulher se identifica com a minha luta não me sinto tão sozinha. Quando declamo em um sarau e sou ouvida, não me sinto tão sozinha. A poesia vem na minha vida pra romper os silenciamentos. Pra ultrapassar barreiras, a poesia avoa e chega aonde meus pés sequer sonharam em pisar!
Como você enxerga a atual conjuntura poética e política do país?
Não tem como escrever sobre flores em um país onde morrem milhares de pessoas diariamente. Não tem como não escrever sobre a fome, sobre o despreparo desse governo genocida. Vivemos em caos, liderados por um idiota e sua familícia. Esperamos dias melhores, mas vivemos uma realidade trágica e diária nas periferias.
Fale um pouco do seu novo livro Mulher do Fim do Mundo?
Mulher do fim do mundo são minhas vivências poéticas como mãe e mulher preta periférica. Retrata não apenas a minha dor, mas também a minha luta, as minhas conquistas. Mulher do fim do mundo foi inspirado em Carolina Maria de Jesus, que, assim como, eu era mãe solo de três crianças e lutava diariamente por sua sobrevivência. O livro traz uma reflexão sobre a contemporaneadade e os reflexos atuais das falas de Carolina. Ainda vivemos em um país de fome e ainda moramos em quartos do despejo!
Você tem um projeto de biblioteca comunitária. Como é esse trabalho?
Eu trabalho com recreação periférica nas comunidades da Baixada Santista há alguns anos. Com a pandemia não havia possibilidade de haver eventos e resolvi transformar o espaço da “Conto de fadas periférico” em uma biblioteca comunitária. O objetivo é que as crianças da minha comunidade tenham acesso a livros infantis de escritores negros. Empoderar crianças em uma educação antirracista e anti machista é o foco da biblioteca comunitária conto de fadas periférico!
Você acredita que a leitura é o caminho para empoderar nossas crianças negras?
Sim, é de extrema importância para a criança se ver retratada na literatura. Se identificar com os personagens, conhecer a cultura afro através dos livros. Como eu disse, quando eu era criança não tinha esse acesso. Cresci lendo Monteiro Lobato e, na fase adulta, percebi todo o racismo embutido em suas obras. Hoje temos uma crescentes de autores negros infantis. Trabalhar esses livros a fim de empoderar crianças é necessário e gratificante.
Mãe no Brasil é um lixo
Mãe é quem faz tudo É quem acorda É quem não dorme É quem nem come É quem anda a pé pra economizar a passagem Comprar um agrado, um doce um salgado Chegar em casa cansada depois do trabalho sem homenagem, sem aplauso Tirar o pacote do bolso e entregar na mão dos filhos Mãe é aquela que faz sacrifício para ver todo mundo sorrindo! Tá pago, todo sofrimento foi pago No momento do sorriso, Em um abraço apertado Em um desenho rabiscado no papel amassado Será guardado em uma caixa de sapato Como se fosse um Picasso! Toda mãe é artista, malabarista de orçamento E nem por um momento diga que mãe é vagabunda que vive as custas de pensão De benefício, de bolsa? Minha bolsa não tem marca É sacola de feira que sustenta família! Absurdo escutar insulto de quem nem sabe a hora da xepa! Mãe no Brasil é tratada como lixo Resquício, sobra Tipo Ilha da Flores inversão de valores Ofensa, vem dos senhores Aplausos para esses filhos da puta amada pátria mãe Brasil Filhos de mulheres que pariu Com dor, Com força Hoje é tratada como lixo Pelo estado Pelo ex que ainda se vê proprietário Pensão atrasada, armário vazio E ela na luta Dona de casa, dona da porra toda Mãe enfermeira, professora Mãe é doutora advogada Em defesa das cria mãe arruma briga Mãe de periferia tem o coração enorme Faz almoço de domingo, família reunida Quer geral em volta da mesa Cê quer saber? Pra mim toda mãe é uma Deusa!
No meio do caminho havia uma pedra
Pedras no plural Afinal, tem tantas pedras no meio do caminho da periferia Uma rua sem asfalto, Quase sem luz e esgoto a céu aberto Uma rua de pedra, Luz só com gato no fio Ratos no chão Correndo de uma pilha de lixo pra outra Sem meios caminhos, o jeito é sobreviver no meio do entulho Morador do fim do mundo João, menino da ruela Não viu mal em atirar uma simples pedra Contra uma janela, em forma de protesto Inspirado em poetas marginais periféricos Gritou: AS PEDRAS NÃO FALAM MAS QUEBRAM VIDRAÇAS! Ouviu-se um boom em meio a viela e a voz do poeta ecoou na favela Um eco vindo do disparo, arma, fardado e despreparado Atingiu o menino E antes que a pedra pesada cumprisse seu destino A leve bala acertava seu alvo Negro! João Caiu no meio do caminho O projétil no chão foi recolhido O menino foi morto na rua de pedras Antes fosse só as pedras no meio do caminho São as balas perdidas que sempre têm o mesmo destino Genocídio De menino Preto Morador de favela Já a pedra? Essa desviou seu trajeto João morreu inocente Sem ter quebrado a janela
Contatos Julie Lua: Instagram e Facebook
O Escrita Preta tem a curadoria do editor e poeta Nego Panda. WhatsApp: (13) 996950466. Instagram: @nego_panda. Facebook: Poeta da Boêmia