Lei que transformou a universidade faz dez anos e transforma a sociedade
Por Vanessa Silva e Eliabe Figueiredo do Conexão UFRJ * – redacao@negrxs50mais.com.br
Antes de o Brasil ter a lei que transformou a universidade e que regulamenta cotas no ensino superior das federais, outras ações afirmativas já haviam sido implementadas, ou pelo menos houve a tentativa de implementá-las. Nos anos de 1980, por exemplo, o deputado federal Abdias Nascimento formulou o Projeto de Lei nº 1.332/1983, que propunha a reserva de 20% das vagas para mulheres negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público, bolsas de estudos e a introdução, no currículo, da história das civilizações africanas e do africano no Brasil, entre outras demandas. O projeto não foi aprovado pelo Congresso Nacional.
No âmbito da educação superior, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) foi a primeira universidade pública a implementar cotas em seu vestibular, em 2003, destinadas a estudantes oriundos da rede pública de ensino e a candidatos negros e pardos. A legislação vinha em constante mudança desde 2000, quando a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a Lei nº 3.524/2000, que reservava 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas. Em 2001, a Alerj aprovou a Lei nº 3.708/2001, que destinava 40% de vagas para candidatos autodeclarados negros e pardos. No ano de 2003, essas leis foram modificadas e substituídas pela Lei nº 4.151/2003. A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira universidade federal a adotar o sistema de cotas, o que levou a discussão para o nível federal. Em 2004, a implementação das cotas na UnB foi feita por meio da proposta de destinar 20% das vagas a estudantes negros, pardos e indígenas.
Em 2014, após grande resistência, a Universidade Federal do Rio de Janeiro passou também a usar o sistema de cotas raciais no ingresso de seus alunos à graduação. A Universidade durante algum tempo considerava apenas as cotas sociais, que destinavam as vagas a estudantes de baixa renda e vindos de escolas públicas.
Universidade e sociedade mais diversas
Para Marcelo de Pádula, superintendente-geral de graduação da UFRJ, respeitar as desigualdades é posição fundamental das universidades. “É muito importante termos médicos, dentistas, advogados pretos formados pela maior universidade federal do país. Essas pessoas são exemplos de uma realidade possível em que não há nenhum problema em entrar num consultório e ser atendido por um médico preto, por exemplo.”
O perfil dos alunos de graduação da UFRJ mudou de forma considerável ao longo desses dez anos. A Universidade hoje é mais diversa, indo ao encontro de uma das maiores críticas ao ensino público superior no país: de ser um espaço elitista. Para que a universidade e outros espaços deixem de ser basicamente ocupados pelos que tiveram acesso a melhores condições de formação e de vida, é preciso que existam políticas públicas que direcionem esse acesso. Para Pádula, “abrir a universidade para quem tem condições, mas compete em desigualdade, é fundamental. Precisamos de outros instrumentos também para atacar o ensino fundamental e ensino médio. Para aí um dia poder falar de igualdade”.
Denise Góes é servidora da UFRJ e coordenadora da Câmara de Políticas Raciais da instituição. Ela também destaca a diversidade atual da Universidade. “A importância da reserva de vagas é trazer a diversidade. Hoje a gente vê alunos negros e negras transitando e ocupando a Universidade, que também é deles, por meio dessa política assertiva. Tempos atrás isso era visto como algo inatingível”, diz.
O Estado brasileiro tem uma dívida com os negros
A política de reserva de vagas é algo a ser analisado sob a perspectiva da sociedade, e não apenas de casos individuais. Góes pontua: “A cota não é demérito. O que os negros precisam é de promoção de oportunidades, para que todos tenham o mesmo ponto de partida. Lá em 1888, quando foi assinada a Lei Áurea, os até então escravizados saíram sem condições mínimas de sobrevivência. Isso não é fazer retórica à escravidão, é fazer retórica à História do Brasil. O Estado brasileiro tem uma dívida com os negros”. E completa: “A movimentação dos negros nessa sociedade movimenta tudo ao redor”.
Dentre os vários argumentos dos discursos contrários às cotas, existem os que acreditam que o nível de qualidade das universidades poderia cair. Sobre isso, Pádula, que é também professor na Faculdade de Farmácia (FM), comenta:
“A primeira coisa que eu notei como docente antes de vir para a Administração Central é que tivemos o ingresso de um contingente de pretos, pardos e indígenas cujo desempenho não era diferente do desempenho do estudante da ampla concorrência. O desempenho era equivalente e muitos estudantes cotistas eram até melhores que os não cotistas”.
Marcelo de Pádula, superintendente-geral de graduação da UFRJ
Construindo outras histórias por meio da educação
Beatriz Albino, de 22 anos, é aluna do curso de Medicina na UFRJ e está tentando construir e contar uma outra história da sua vida. Filha de um pedreiro e uma telefonista, cursou o ensino médio em escola pública, na qual enxerga uma defasagem: “Aos 16 anos, no último ano do ensino médio, decidimos que eu tentaria a vaga para o curso de Medicina até conseguir entrar. O primeiro choque de realidade que tive durante o processo do vestibular foi a defasagem que eu tinha em matérias de exatas, como física e matemática. Eu não tive aulas de matemática durante um ano no ensino médio, pois o professor entrou de licença e não havia substituto para o horário da minha aula. Além de que os conteúdos das provas do vestibular eram complexos demais para o que eu havia visto em aula. Com isso, precisei de três anos de muito sacrifício, não só meu, mas também de toda a minha família, para que eu conseguisse uma vaga na Faculdade de Medicina da UFRJ”.
Ela diz não acreditar em meritocracia (discurso que prega as conquistas por meio exclusivo do mérito, sem considerar quaisquer diferenças entre as pessoas) e que as subjetividades de cada um devem ser valorizadas em qualquer situação.
“Eu sou uma mulher negra que teve essa oportunidade. Mas é necessário levar em consideração que, infelizmente, a maioria das mulheres negras não tem essa oportunidade e precisa abrir mão do seu sonho para dar auxílio financeiro à família”, ressalta a estudante.
Beatriz Albino – estudante de medicina
Albino lembra ainda que foi graças à Lei de Cotas que conseguiu entrar em um dos cursos mais disputados da UFRJ: “Eu entrei na Faculdade de Medicina em 2018, após tirar nota máxima na redação do Enem. Ainda assim, só tive nota para passar, pois tinha direito às políticas afirmativas. Minha nota foi boa na área de humanas e linguagens, mas desvalorizada pela defasagem que tive nas áreas de exatas ao longo dos anos de ensino médio”.
Primeiros universitários das famílias
É muito comum uma pessoa preta ou parda ser a primeira de sua família a ingressar na faculdade. O aluno Jonatas Santos, de Ciências Contábeis, tem 21 anos e é morador da Zona Norte do Rio. Ele conta que seu ensino médio foi feito parcialmente na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), com o ingresso a partir de cota, e que conseguiu ingressar na UFRJ também graças a elas.
“A Lei de Cotas é uma abertura de portas. As cotas nos trazem a esperança de um futuro melhor, através da educação. Sou o primeiro da minha família a ingressar na UFRJ, graças a esse sistema, e acredito que outros também tenham sido pioneiros em suas famílias. A história tem mudado e as universidades públicas têm se tornado um lugar menos elitista. Mas, ainda assim, o caminho é longo e precisamos defender nosso direito.”
Jonatas Santos, aluno de Ciências Contábeis
As comissões de heteroidentificação dando suporte ao processo democrático
Até 2020 a UFRJ trabalhava apenas com a autodeclaração para o preenchimento das vagas destinadas às cotas raciais, o que acabou proporcionando a possibilidade de fraudes. Para Denise Góes, a autodeclaração é uma vitória no sentido de as pessoas se perceberem e se declararem negras em um país como o Brasil. Porém, ela complementa: “Depois de um tempo a autodeclaração passou a ser usada com fins de reivindicar a ascendência negra e tentar as vagas já reservadas para pretos e pardos. Por isso a Comissão de Fraudes, dentre várias outras, foi instituída em um momento em que o número de fraudes aumentou por causa das inconsistências nas declarações”. Existe hoje na Universidade um grupo dedicado ao controle social e administrativo dessa política pública. Por meio das comissões de heteroidentificação, as vagas destinadas chegam aos seus sujeitos de direito.
A primeira formação e atuação das comissões de heteroidentificação se deu em 2017 ‒ seus primeiros editais foram o 293/16 e o 455/17 (concursos públicos para técnicos-administrativos). Nesse ano foram feitas mais de 3 mil heteroidentificações. Formada por técnicos-administrativos, docentes e alunos, a Comissão de Heteroidentificação é marcada pela diversidade, inclusive em relação a gênero e raça. Além de atuar nos processos de heteroidentificação, ela também oferece cursos de formação sobre questões étnico-raciais, muitas vezes abertos a toda a comunidade universitária ‒ interna e externa.
Góes considera que à comissão não deva ser atribuída a ideia de tribunal racial: “O papel atribuído a ela de tribunal racial − tinha o objetivo explícito de descaracterização das ações de proteção da política pública − já ficou para trás há muito tempo. Ela faz valer a lei no sentido de que as vagas cheguem a seus sujeitos de direito. As fraudes fizeram um corte negativo no processo de autodeclaração. É preciso que uma comissão analise se essa autodeclaração está dentro dos critérios estabelecidos pela orientação normativa. O critério é fenotípico. Textura do cabelo, formato do nariz e boca e tom da pele. Ressaltamos que, no Brasil, o racismo é de marca, não de origem”.
Políticas públicas para além da graduação
Segundo Góes, as cotas são importantes também na pós-graduação. “Não adianta achar que o aluno vai fazer a graduação e vai embora. Ele quer e precisa ter a extensão da política de reserva de vagas na pós-graduação. A Universidade precisa se abrir em toda a sua forma de acesso aos cursos”, opina. Os cursos de pós-graduação estão se aproximando dessa discussão.
Atualmente existe a sugestão de que os programas de pós-graduação da Universidade tenham políticas de cotas, mas não existe lei que as regulamente.
No que tange ao acesso de servidores públicos, não só nas Universidades, mas em toda a administração pública federal ‒ autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União ‒, a Lei nº 12.990/14 reserva 20% das vagas oferecidas aos negros.
*Matéria publicada no Conexão UFRJ
Foto em destaque: Ana Marina Coutinho (Coordcom/UFRJ).