Arlindo Cruz recorre a cannabis para enfrentar sequelas do AVC

Arlindo Cruz recorre a cannabis para enfrentar sequelas do AVC

Share With Your Friends

Por Rosayne Macedo do site Vida & Ação* – redacao@negrxs50mais.com.br

Enredo do Império Serrano no carnaval carioca de 2023, com o samba ‘Lugares de Arlindo’, o cantor e compositor Arlindo Cruz, de 64 anos, luta bravamente desde 17 de março de 2017 contra um Acidente Vascular Cerebral (AVC) hemorrágico que o abateu quando tomava um simples banho. Ficou um ano e três meses internado. Quando voltou para casa, era um novo Arlindo. A doença roubou-lhe a voz, os movimentos, as expressões. Não pode mais cantar, compor nem tocar seu quase inseparável banjo. Para enfrentar sequelas do AVC recorre ao tratamento com a cannabis.

Mas ele não perdeu a vontade de viver. E vem recebendo toda a assistência e acolhimento possíveis para vencer a doença, conjugada a outras comorbidades que o levaram a 15 cirurgias e várias internações.  A rotina semanal é intensa, com muitas sessões de fonoaudiologia e fisioterapia. Devido à afasia, um distúrbio decorrente do AVC que afeta a linguagem, Arlindo está impossibilitado de falar, mas interage por meio de gestos, emoções ou expressões faciais.

“Nossa vida muda com um piscar de olhos. Somos todos muito frágeis, não só o Arlindo que hoje se encontra acamado, com grau muito diminuído de consciência, mas quem está são, trabalhando, caminhando, vivendo”, disse Babi Cruz à revista ‘RIO JÁ’.

Homenageado nos carnavais do Rio e de São Paulo

Ex-porta-bandeira da União da Ilha, ela é esposa e mãe de seus dois filhos – Flora e Arlindinho, que herdou os talentos do pai – e que participa ativamente do dia a dia do marido. Arlindão também é cercado pelo carinho dos netos Ridan, Antônio e Maria Hellenna.

A escolha para enredo do Império, sua escola do coração, não é a primeira homenagem que os 64 anos, Arlindão, como é carinhosamente chamado por muitos, recebe no Carnaval. Em 2019, a X-9 Paulistana reverenciou o sambista – considerado um dos maiores nomes do mundo no Brasil – com o enredo ‘Meu lugar é cercado de luta e suor, esperança num mundo melhor! O show tem que continuar!’.

Na ocasião, o artista compareceu de cadeira de rodas no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, emocionando o público. O mesmo é esperado para este ano na Sapucaí, mas sua presença ainda é incerta – vai depender do seu estado de saúde no dia do desfile. 

“Nossa intenção é levá-lo para a Avenida. Esse é o ápice, a cereja do bolo, o ‘grand finale’ desse momento, mas tudo depende de como Arlindo vai estar. Não posso decidir isso sozinha. A equipe médica é que vai decidir. Tem dias que o Arlindo está muito bem, noutros está no mundinho dele, com pouca comunicação. O que a gente quer é que ele esteja bem para receber essa energia pessoalmente na Avenida, mas a gente só vai saber disso bem perto”, conta Babi.

‘Vida sem regras’ e tratamento com Cannabis

Arlindo Cruz- enfrentar sequelas do AVC, cannabis, banjo
Arlindo Cruz e seu banjo. Foto: Marcos Hermes

Em entrevista ao “Brito Podcast”, em dezembro de 2022, Babi falou da vida “sem regras” do cantor, antes de sofrer o AVC. “Era de comer muito, de beber, de ser pagodeiro, de não ter hora, de drogas. Só não pode falar que ele era mau-caráter, que ele era filho da p*ta, mas que ele era um cara bon vivant, sim. E quem não?”, explicou. Babi ainda revelou que a droga entrou na vida de Arlindo Cruz ainda na época de escola.

“A droga chegou muito cedo na vida do Arlindo, na escola. Cuidado vocês que estão me ouvindo, prestem atenção com seus filhos na escola, que a droga não tá no samba só, não. A droga está nas melhores escolas. Mas também não tem AVC só quem usa droga não. AVC só não dá no poste e no pneu, mas em qualquer um de nós, dá”, afirmou.

Para ajudar a minimizar os impactos das sequelas do AVC na qualidade de vida do artista, a família resolveu recentemente recorrer ao tratamento com Cannabis medicinal. E garante que já tem obtido resultados. A sensibilidade aumentou, a percepção e a atenção estão evoluindo no contato com os olhos e Arlindo tem se mostrado mais pensativo e tateado mais, como ocorreu ao tocar piano no celular. 

Esperança de evolução com novos tratamentos

“Uma evolução progressiva e evolutiva diante do quadro de saúde atual, onde temos esperança de maiores evoluções com decorrer do tratamento que vamos entrar com a parte de estímulos físicos e outras técnicas indicadas pelos profissionais de saúde que o acompanham”, conta Babi.

A esposa do compositor revela que, antes mesmo do pânico da pandemia do coronavírus, pôde experimentar na pele a dura realidade de entender o tamanho da fragilidade que vivemos como seres humanos. 

“Como vem a dor, vem a conformação. Quando a dor é muito forte, é uma coisa definida, que não muda, você tem que se adequar e se conformar para que aquela dor não te destrua também. É como uma pessoa que sofre um acidente e perde uma perna, um braço ou a visão. Ela não morre, mas tem que continuar vivendo sem aquele braço, perna ou sem enxergar. É uma mutilação, é um pedaço da gente que a gente não vai ter mais. É viver, é viver”, diz Babi.

Há quase seis anos “Vivemos um dia de cada vez”

Babi faz um balanço desses quase seis anos da doença ao lado do marido. “Para mim, é um renascimento… Quando você pisca os olhos e vê que a sua vida é outra. O sentimento de medo de perder a pessoa que você ama… É uma vitória, sim”.

Segundo ela, foram fases muito críticas, incertas, inseguras.

“Hoje a gente vive outro momento, com um pouco mais de equilíbrio para saber viver, ter motivos para sorrir, sambar, cantar. Não só para cantar profissionalmente, como foi com Arlindinho, mas quem canta os males espanta”. 

Em um vídeo emocionante no Instagram, sem pronunciar uma só palavra, o artista demonstra todo o seu afeto. “Com você eu vivi o mais lindo sonho de amor. Hoje eu vivo a chorar meu universo desabou…. Felicidade é um estado de espírito”, escreveu Babi.

Ela iniciou no mundo do samba aos 7 anos como passista mirim, tornou-se porta-bandeira aos 12 e conheceu o compositor aos 15, na antiga Asa Branca, na Lapa, num show em que ela se apresentou e Arlindo compareceu, levado pela madrinha, Beth Carvalho.

De Madureira para o mundo

Arlindo Cruz- enfrentar sequelas do AVC, cannabis - Arlindinho - filho
Arlindo Cruz e o filho Arlindinho, que herdou o talento musical do pai –Foto: Reprodução do Instagram

‘O meu lugar / É sorriso é paz é prazer / O seu nome é doce dizer / Madureira, lá lailá’. E foi lá, mais precisamente no Morro da Serrinha, ao lado da estação de trem do popular Mercadão de Madureira, na quadra do Império Serrano, que Arlindo Domingos da Cruz Filho consagrou-se no mundo do samba.

E retribuía seu amor pela escola, pelo seu território, pela sua ancestralidade em cada letra. Rebaixada à Série Ouro em 2019, a Verde e Branco de Madureira volta triunfalmente ao Grupo Especial do Carnaval carioca de 2023 com um grande trunfo na manga: um tributo a um de seus mais ilustres compositores.*

Uma das principais estrelas das rodas de samba do Cacique de Ramos e do grupo Fundo de Quintal, Arlindo Cruz passou no final dos anos 80 a disputar eliminatórias de samba enredo, vencendo 17 vezes, 11 somente no Império Serrano, sua escola do coração – outras quatro foram na Vila Isabel e duas na Grande Rio. Por seu trabalho no Carnaval, conquistou seis prêmios Estandarte de Ouro. 

Passeio pela trajetória de Arlindo

O anúncio do enredo do Império Serrano de 2023, em junho do ano passado, foi marcado por muita emoção. De cadeira de rodas no palco, ao lado da família, Arlindo foi ovacionado pela plateia na quadra da escola. O samba-enredo ‘Lugares de Arlindo’ foi aprovado em outubro, com grande festa.

A música é uma composição de Sombrinha, parceiro de Arlindo em tantas outras composições, Aluísio Machado, Carlos Senna, Carlitos Beto Br, Rubens Gordinho e Ambrosio Aurélio. Feito em acróstico, o formato chama atenção: as primeiras letras de cada verso formam o nome Arlindo Domingos da Cruz Filho no sentido vertical.

O samba passeia por vários lugares na vida desse imperiano raiz, sua carreira musical e sua religiosidade, sempre presente na sua obra. Candomblecista, desde a barriga da mãe, como revelou no lançamento de ‘É Religião’, Arlindo é filho de Xangô, o Rei do Trovão, orixá da justiça e inovação. Flamenguista, é fotografado ou filmado muitas vezes com a camisa do time, emocionando os mais de 1 milhão de fãs que o seguem devotamente nas redes sociais.

Arlindo Cruz- enfrentar sequelas do AVC, cannabis- desfile Império Serrano
Desfile do Império Serrano 2023

“Em cada esquina, um pagode, um bar”

O desenvolvimento do enredo está a cargo do carnavalesco Alex de Souza. Ele faz segredo sobre as novidades que a escola trará para a Avenida em sua reentrada no Grupo Especial, mas antecipa alguns detalhes. “Fazemos um passeio pelo universo do artista, revelando lugares físicos ou imateriais, que são referidos nas suas músicas. Sem esquecer, de trazer suas origens, suas referências e suas inspirações”, conta ele à RIO JÁ. **

Ainda segundo Alex, a letra do samba descreve bem diversos momentos que serão apresentados em fantasias e alegorias. “Como seu mestre, o famoso Candeia; o Cacique de Ramos e o Grupo Fundo de Quintal, seu jeito carioca suburbano, quando descreve Madureira e adjacências, pelo lado boêmio e o lado místico. O romântico pagodeiro; o vitorioso compositor de sambas enredo e sua paixão pelo Império e seus grandes nomes”. 

O primeiro dos cinco carros mostra o início da carreira de Arlindo, no Cacique de Ramos. O segundo, ‘Em cada esquina, um pagode, um bar’, retrata a boemia, presente na vida do artista. Já o terceiro destaca a parte do sincretismo religioso. “Arlindo é um homem de fé”, ressalta. Já o quarto é dedicado à família e destaca a mulher, Babi, porta-bandeira. E o último carro é o grande palco da vida, que imortalizou a obra dele.

Um enredo para fazer a Avenida inteira chorar de emoção

A parte que mais mexe com o carnavalesco é em relação ao Império Serrano, que se tornou a escola de coração dele. “Arlindo que sempre reverenciou a escola, agora é a escola que o homenageia”.

O presidente Sandro Avellar confirma. “O imperiano pedia muito, sempre teve esse desejo de mostrar sua gratidão para o Arlindo Cruz, que foi uma pessoa importante para o legado do Império Serrano, com a contribuição com os sambas, com seus shows, às vezes com recurso próprio ele ajudou o Império. Ele levou a marca da escola para diversos lugares”, revelou ao site ‘Carnavalesco’.

Além de retribuição ao trabalho dedicado por Arlindo à escola, o Império – que já homenageou grandes baluartes na última década, como Dona Ivone Lara e Silas de Oliveira, também aposta no apelo popular e na ancestralidade que o cantor e compositor carrega para comover o grande público e ajudar a agremiação a se manter entre as gigantes do Carnaval, após amargar três anos fora do Grupo Especial, e, quem sabe, ajudar a conquistar o sonhado 10º campeonato. “É um enredo muito emotivo.

Arlindinho concorre com samba pela adversária Grande Rio

Eu acho que a família imperiana vê esse enredo como uma forma também de mostrar as origens do Império Serrano. Acho que o Império Serrano é uma escola bastante emotiva, nós somos chorões, nós choramos na avenida”, completou Avelar.

Segundo Babi, toda a família está empenhada na vitória do enredo Lugares de Arlindo. Questionada se haverá divisão na torcida – já que o samba vencedor da Grande Rio, campeã de 2022, é de Arlindinho e sua equipe, em homenagem a Zeca Pagodinho, assim como foi ano passado -, ela garante que não.

“Não chega a dividir não. É uma porção muito intensa, grande e forte. Lá com samba enredo já ganhou, modéstia à parte. Mas enredo é um só. Como mãe fico muito orgulhosa por Arlindinho ter ajudado a Grande Rio a ganhar seu primeiro título e agora vencer com o samba para o Zeca, mas o nosso coração está neste momento totalmente dedicado ao Império Serrano e ao enredo ‘Lugares de Arlindo”.  

Os novos (e muitos) lugares de Arlindo

E como o show que tem que continuar, como diz uma de suas mais famosas canções, a família Cruz toca outros projetos de vida de Arlindão, existentes antes mesmo do AVC, como o estande ‘Meu Lugar’, no Mercadão de Madureira.  “O homem que levou o Mercadão de Madureira para o mundo todo, nada mais justo do que ter um comércio, um pedacinho de Arlindo no Mercadão”. 

Um projeto só de mulheres cantando Arlindo e até um botequim com a marca do artista também estão nos planos da família. “Assim como tem o Buteco do Zeca, o Buteco da Alcione, também pretendemos fazer o Buteco do Arlindo, que já está em fase de projeto e de orçamento a ser concluído”, adiantou Babi. O legado da obra do artista também estará reunido em um documentário e um livro de biografia, a serem lançados.  

“Temos muitos projetos de vida dessa fonte inesgotável de música e de samba chamada Arlindo Cruz. Arlindo tem exatamente 1.000 sambas gravados que são imortais. Arlindo é imortal, a obra dele é imortal. Ele tem um legado que é atemporal. Por mais que não tenha mais condições de compor, a obra dele é suficiente. Ele tem obra capaz de viver por mais 800 anos”, conta Babi. 

Se depender da energia e amor da família e dos fãs, os ‘Lugares de Arlindo’ não têm fim. E quem gostou, faz barulho aí, como sempre dizia Arlindão em seus shows.

Conheça a letra do samba do Império Serrano para o Carnaval 2023:

Lugares de Arlindo

Acorde partideiro sem igual, nascia então, um samba do seu jeito

Reluz feito Candeia, imortal, o compositor, sambista perfeito

Levada de tantam, banjo e repique, poesia de um Cacique, malandragem deu lição

Inspiração de ventre ancestral, o dueto, a patente vem do fundo do quintal

Na boêmia, no subúrbio, na viela… O seu nome é favela: Madureira

Dagô, Dagô Saravá, Obá kaô

O brado que traz justiça, faz a vida recompor

Deixa, o fim da tristeza ainda há de chegar

O show do artista vai continuar

Morando nos sambas que você fez pra mim

Imperiano sim!

No verso que aflora

Giram os sonhos da porta-bandeira

O amor de Orfeu melodia namora

Serrinha é teu canto pra vida inteira

Dagô, Dagô é a lua de Aruanda

A espada é de guerra e Ogum vence demanda

Cercado de axé, semeia o bem, o povo a cantar laiá laiá laiá

Receba a gratidão, Reizinho desse chão, aqui é o teu lugar

Uma porção de fé… O filho do verde esperança nos conduz

Zambi da Coroa Imperial, abiaxé, Arlindo Cruz

Firma na palma da mão, tem alujá e agogô

Império Serrano, falange de Jorge, oxê de Xangô

Laroyê Epa Babá

Há de roncar meu tambor

O verso de Arlindo, morada do amor

Fotos: Instagram do Arlindo Cruz

*Matéria publicada originalmente no Site Vida & Ação.

**A Império Serrano foi a última colocada no carnaval do Grupo Especial e foi rebaixada. No próximo ano disputará Série Ouro do Carnaval do Rio.

Leia também:

negrxs50mais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *