Heitor dos Prazeres, das ruas do Rio aos salões do mundo
Por Ivan Accioly – ivanaccioly@negrxs50mais.com.br
Rio é rua, Rio é festa, Rio é uma cidade múltipla. Falar bem é fácil. Falar mal não é difícil. Hoje fico com a primeira opção, inspirado no, para mim, até então desconhecido Heitor dos Prazeres. Alguém de quem eu tinha informação genérica como sendo um sambista de sucesso que também era pintor. Mas só isso, sem detalhes. Eis que tive que me dedicar a conhecê-lo um pouco mais e, em alguns dias, li vários textos sobre sua obra e passei a admirador. Na música, só para reforçar o quanto desconhecia, não registrava que o clássico Pierrot Apaixonado, de tantos carnavais, é uma parceria dele com Noel Rosa.
Mas porque iniciei falando sobre o Rio ser rua, o Rio ser festa? Porque Mano Heitor do Cavaco, o músico, viveu essa festa das ruas do Rio intensamente a partir do início do século XX. Nascido na região da Praça XI, em 1898, é a ele atribuída a denominação de “Pequena África” à parte central da cidade que concentrava os negros ex-escravizados.
Do popular à academia, pioneiro do samba e precursor do afrofuturismo
Frequentador da famosa Casa da Tia Ciata, amigo e parceiro de Pixinguinha, Paulo da Portela, Ismael Silva, Donga, Sinhô (com várias escaramuças), Cartola e dezenas de outros, incluindo os brancos de elite, como Noel Rosa, Carlos Drumond de Andrade, Dalva de Oliveira e Herivelton Martins, por exemplo, Heitor conhecia os becos, bares e os salões nobres da cidade. Ia do popular à academia. Esteve na gestação do samba como gênero musical e, depois, na criação das escolas que consolidaram a festa, como Estácio, Portela, Mangueira e Unidos da Tijuca.
Aproveitava o de melhor que sua vida proporcionava e levou para as telas, quando passou a se dedicar à pintura, essa sua vivência. Militou ao seu jeito e sofreu críticas por retratar em seus quadros uma negritude em festa. Apontavam “alienação e ingenuidade”.
Corpos pretos altivos, elegantes, senhores de si, afrontavam aqueles que cobravam que a “realidade” devia ser retratada. Um pessoal que não entendia o que via, pois Heitor estava à frente. Se hoje o afrofuturismo é valorizado com o empoderamento dos corpos negros, Heitor já fazia essa valorização da ocupação espacial por esses corpos em meados do século XX e explicava:
“Eu sou Heitor de Prazeres, Heitor dos Prazeres é meu nome.
Este prazer que eu tenho no nome é o prazer que eu divido com o povo.
Este povo com quem eu reparto este prazer.
Este povo que sofre, este povo que trabalha, este povo alegre que eu compartilho a alegria desse povo.
A alegria deste povo, o sofrimento deste povo é o que me obriga a trabalhar.
É o que me faz transportar para tela o sofrimento do povo.”
Heitor dos Prazeres
Corpos negros são senhores de seus espaços em Heitor dos Prazeres
Em seus quadros não há subalternidade comum em outros artistas que registraram negros nas ruas do Rio em pinturas e fotografias. Os corpos negros em Heitor são senhores de seus espaços, sejam os terreiros, as ruas, os salões, as escolas de samba, as favelas ou gafieiras. Os negros neles têm humanidade, sorrisos, danças e cabeças erguidas.
Como diz Jorge Luis Barbosa: “Não se trata apenas de construir visibilidades para os invisíveis, mas construir reconfigurações da significação dos corpos, práticas e símbolos em condições sistemáticas de constrangimento e à sua livre manifestação.”
Heitor dos Prazeres cumpriu esse papel pessoalmente, abrindo espaço para corpos negros. Fosse com sua música e seu grupo “Heitor dos Prazeres e sua Gente”, fosse nas suas telas. Valorizou os negros mundo afora ao mesmo tempo que estava nas ruas do Rio.
Exposição no CCBB
Quem quiser conhecer um pouco sobre o artista, pode visitar a exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”, em cartaz no CCBB Rio (Rua Primeiro de Março, 66) até 18 de setembro.