Ruth Pinheiro e a militância negra no mundo empresarial

Por Ivan Accioly – ivan-accioly@negrxs50mais.com.br
Com uma trajetória que mescla ativismo e ambiente empresarial, Ruth Pinheiro e a militância negra no mundo corporativo se confundem. Ela é uma das figuras mais atuantes do movimento negro no Rio de Janeiro. Com firmeza, empatia e muita articulação, ocupa espaços estratégicos. Participa tanto dos bastidores da política, quanto circula nos corredores das empresas. Sempre mantém a consciência de que representar é diferente de apenas estar presente.
Desde jovem, Ruth se entendeu como uma mulher negra em movimento. Fez parte de organizações sociais e, com o tempo, entendeu que precisava também “ocupar a cena de forma mais propositiva”. Encontrou nos eventos, nas consultorias e na interlocução com empresas um campo de atuação. “O empreendedorismo entrou na minha vida como uma maneira de gerar renda, mas também de abrir espaço para a nossa pauta”, explica.
Carioca que mesclou educação, ativismo e empreendedorismo
Nascida no bairro do Engenho Novo, no Rio de Janeiro, em 1948, Ruth conviveu com a separação dos pais quando tinha sete anos de idade. Viveu em um internato até os onze anos de idade. Depois foi morar com o pai, Walter Pinheiro, um afro empreendedor dono de uma agência de automóveis, e sua nova mulher, D. Amélia. Mas não deu certo. A madrasta branca infernizava a vida de Ruth. Ela lembra: “me maltratava muito. Foi muito difícil esse período da minha infância, e eu gostava muito de estudar. Então, meu castigo era sempre ficar sem estudar, porque era a única coisa que eu queria. Naquele tempo era assim.” Aos 15 anos, foi viver com a mãe, Célia Silva, dona de casa e costureira, em Juiz de Fora (MG).

Autodidata, dava aulas de português para colegas e, em 1964, conseguiu um emprego como datilógrafa na Companhia Telefônica Brasileira. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Dessa forma, Ruth Pinheiro seguiu e se formou em administração. Trilhou uma carreira que mesclou educação, ativismo e empreendedorismo.
A entrada de Ruth Pinheiro no movimento negro aconteceu a partir de sua posição na companhia telefônica. “O movimento negro me achou”, relata Ruth. Sua capacidade de comunicação e acesso à rede telefônica nacional a transformaram em um ponto de referência para a troca de informações entre militantes de diferentes estados. Ela se recorda de fazer contato com figuras como Jacy Trindade no Rio Grande do Sul e João Francisco no Maranhão, estabelecendo uma rede de apoio e comunicação vital para a articulação do movimento naqueles tempos de comunicação limitada.
Domínio do inglês abriu portas entre diplomatas, artistas e pesquisadores

Nesses anos 1980 aprofundou os contatos com militantes de todo o país. Por meio de Benedita da Silva (PT) e líderes do PDT, Ruth mergulhou na produção de eventos culturais e políticos e aprofundou os contatos com a comunidade artística e cultural. Moradora de Vila Isabel, frequentava a escola de samba do bairro e, por meio de conversas com Ruça, então casada com Martinho da Vila, sua habilidade com as comunicações se espalhou. Isso a levou a integrar o Grupo Kizomba, uma iniciativa que produzia eventos de intercâmbio cultural, como o “Canto Livre de Angola“. No Kizomba, Ruth aprimorou suas habilidades em produção de eventos. Passou a conciliar o trabalho formal com o ativismo. A experiência em produção também incluiu a colaboração no documentário “Axé” (1988) da Rede Globo, um trabalho que reuniu diversos artistas negros e ampliou sua rede de contatos no meio artístico.
As nova relações, seu domínio do inglês e habilidades de organização, possibilitaram o acesso a diplomatas, artistas e pesquisadores internacionais. Ela se consolidou como uma figura central no intercâmbio entre o movimento negro brasileiro e as diásporas africanas. Essa vivência despertou nela o desejo de trabalhar em prol da comunidade negra e, culminou na co-fundação do Instituto Palmares Direitos Humanos. Aos 40 anos, Ruth se tornou a primeira mulher presidente do instituto no Rio de Janeiro, um marco em sua trajetória de liderança.
Única representantes do Brasil em fórum que debateu reparação nos anos 90
Um dos pontos altos de sua militância foi a participação no Primeiro Congresso Internacional de Reparação, em Joanesburgo, na África do Sul, em 1993. Ela foi a única brasileira presente, como ouvinte, já que o governo brasileiro da época negava a existência do racismo no país. Dessa forma, não enviou representantes oficiais. Ruth obteve documentos que impulsionaram o movimento de reparação no Brasil. Inicialmente vista com ceticismo, a pauta da reparação foi abraçada pelo movimento negro, especialmente, lembra Ruth, por militantes como Edu Ferreira.
Ruth Pinheiro é presidente do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves – Cadon e presidente de honra da Rede Brasil Afro Empreendedor – Reafro (da qual é fundadora). Também é gestora do Prêmio Nacional de Expressões Culturais Afro-Brasileiras – Prêmio Afro. É cofundadora da Casa das Pretas; consultora da União Africana para cultura e desenvolvimento econômico da Diáspora e conselheira do Círculo Olympio Marques – Colymar, um Centro de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros. É membro do Conselho de Direitos dos Negros do Município do Rio de Janeiro e ocupa o cargo de Secretária Nacional do Coneb – Congresso de Negras e Negros do Brasil.
Ruth uniu ativismo e negócios e fundou o Centro de Apoio ao Desenvolvimento (Cadon), organização que já capacitou mais de 500 mil pessoas, especialmente em comunidades quilombolas. Seu projeto de alfabetização, por exemplo, foi realizado em 25 quilombos e enfrentou até ameaças de fazendeiros, mas garantiu educação a centenas de famílias.
Ruth Pinheiro, a militante, a fundadora de entidades e a mãe
Em 1976 se engajou nos debates do Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN) e nos projetos políticos e culturais liderados pelo compositor e cantor Martinho da Vila. Foi uma das fundadoras e primeira presidenta do Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH) e do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Osvaldo Santos Neves (Cadon).

Mãe de Igor, engenheiro de computação radicado na Holanda, Ruth orgulha-se de ter criado um filho independente, mesmo com as dificuldades de ser mãe solo. Hoje, aos 76 anos, ela não pensa em parar. “Enquanto puder, vou orientar quem precisa. Aposentadoria é tempo de plantar novas sementes.”
Ruth Pinheiro e a militância negra entre o coletivo e o individual: aprendizados do caminho
Ruth costuma dizer que a caminhada no movimento negro é feita de aprendizados coletivos, mas também de muitas dores individuais. “Muitas vezes, fui tratada com desconfiança. Por ser mulher, por ser negra, por não ser acadêmica, por falar de dinheiro, por trabalhar com empresas.” Ela aprendeu, no entanto, que o ativismo negro precisa de muitas frentes: das ruas às salas de reunião, dos quilombos aos encontros nas federações e confederações empresariais.
Tem gente que acha que você ‘não merece’ estar ali
Não se trata, segundo ela, de se adaptar ao mundo corporativo como ele é, mas de transformá-lo por dentro. “A gente não quer só estar nas empresas. Queremos que nossas vozes sejam ouvidas e nossas dores reconhecidas, porque não é só questão de inclusão. É mudança de lógica.”
Ações estratégicas no enfrentamento ao racismo

Hoje, Ruth se divide entre a militância de base, a participação em conselhos e a coordenação de eventos. Transita com naturalidade entre comunidades, coletivos culturais, empresas e espaços de decisão política. Sua escuta é atenta — e sua fala, estratégica. “Não adianta só denunciar. É preciso também propor. E pra propor, a gente precisa entender o funcionamento das instituições, dos contratos, da linguagem do poder.”
Essa postura dialoga com uma visão mais ampla de movimento: para ela, o enfrentamento ao racismo estrutural exige alianças, planejamento e inteligência política. “O tempo do movimento negro não é só o tempo da denúncia. A gente também tem que pensar o futuro, pensar políticas públicas, pensar modelo de país. E isso exige sentar à mesa, negociar, fazer concessões — sem jamais abrir mão da dignidade.”
“Já vi negócios promissores fracassarem porque sócios não acreditavam na capacidade do parceiro negro.”
Espiritualidade, feminismo negro e legado de Ruth Pinheiro e a militância negra

Ruth carrega uma espiritualidade ancestral em tudo o que faz. “Sou uma mulher de axé. Isso me dá força. A espiritualidade me ensinou a estar inteira nos lugares.” Ela acredita que a herança africana precisa ser resgatada como identidade e metodologia de vida. “O saber ancestral nos ensina a pensar em rede, a agir com coletividade, a respeitar os tempos e os ciclos.”
Feminista negra, faz questão de ressaltar a importância de mulheres como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez e tantas outras. “Sem essas mulheres, eu não estaria aqui. E quero também ser essa mulher para outras que vêm depois.” Sua atuação é marcada por uma forte aposta no poder da representatividade. E vai além com uma aposta na transformação estrutural e na autonomia.
Quando perguntada sobre o que gostaria de deixar como legado, Ruth é direta: “Quero deixar a certeza de que é possível ser quem a gente é em qualquer espaço. E que lutar pela nossa dignidade não é incompatível com viver bem, com ganhar dinheiro, com ocupar cargos de liderança. A gente pode tudo e não pode esquecer de onde veio.”
Imagens: acervos pessoais, Instagram de Ruth Pinheiro e foto de Ivan Accioly. A foto em destaque foi atualizada em 28/07