Aldeia na UTI

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Por Lucio Valentim*

Muniz Sodré é nosso McLuhan. Muniz Sodré nosso Umberto Eco é. Filósofo é. Escritor é. Semiólogo é. Pós-doutor é. Tradutor é. Professor emérito é. E acontece que também é baiano.

Num tempo em que as teorias da comunicação apenas engatinhavam no Brasil, quando se falava ainda em cibernética, em telemática, em cérebros eletrônicos, a voz de Muniz já se impunha nas salas e corredores da Escola de Comunicação (ECO), em Botafogo.

Aldeia na UTI
Professor Muniz Sodré

Ali pelos idos dos anos de 1970, época em que as discussões mais avançadas acerca das mídias de comunicação popular se concentravam na TV, Sodré, no rastro de McLuhan, já especulava – e preconizava – um mundo futuro intermediado e manipulado por medias de controle de objetos e de pessoas.

Em O monopólio da fala, texto com que inicia os anos de 1980, o semiólogo nos falava sobre o engenhoso discurso da televisão, e suas falcatruas públicas; em Comunicação do grotesco, na sequência, fazia inferência sobre os programas de entretenimento, esses que apresentam o mundo cão, da luxúria à miséria, ao vivo e a cores. Tudo isso, anos-luz antes dos famigerados reality shows.

Degradação incita à produção do ódio

Já em a Máquina de Narciso, do início dos anos de 1990, o filósofo finalmente adiantava o fenômeno do “ego mínimo promovido a Narciso” ou, em outras palavras, aquilo que Umberto Eco traduziu como “idiota da aldeia”: o indivíduo que outrora falava para o seu grupo, mas que agora se disponibiliza em rede. Atingindo, no ato, a idiotia global.

Num de seus mais recentes textos, Sociedade incivil e barbárie, dentro do contexto da internet, Muniz Sodré constata que a degradação sociocultural incita parcela das classes sociais à produção do ódio.

Neste texto, o professor afirma que nossos tempos sucumbiram “à suposição de que o alargamento técnico dos meios, o aumento da transparência social e a reciprocidade comunicativa fossem capazes de dinamizar os focos gerativos de cultura.”

E acrescenta – refletindo aquilo a que hoje assistimos, perplexos:

“Em meio à notável expansão tecnológica, é crescente o déficit humano de compreensão mútua. Embalado pela imensa liberação expressiva propiciada pela rede eletrônica, o senso comum abandona-se ao êxtase da fala instantânea, ou seja, à ação biológica e mecânica do aparelho fonador, típica do psitacismo (fala do papagaio) ou do robô.”

Afinal – paradoxo total – há um culto à ignorância, ao não-saber, à negação da ciência, em plena égide da sociedade do conhecimento e da multinformação.

Cuidemos, pois, como bem alertara George Orwel, em 1984, ignorância além de força, também se traduz em poder.

*Lucio Valentim é doutor e mestre em Letras pela UFRJ. Especialista em literatura brasileira e professor titular da Universidade Estácio de Sá. O texto foi publicado originalmente no site curtabotafogo.com.br

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