Desigualdade Racial no Brasil: os impactos na saúde mental
Por Sideise Eloi*
A desigualdade racial no Brasil é fruto da discriminação e do preconceito racial, impacta o desenvolvimento do país e prejudica as esferas socioeconômicas da população negra. Leva desde ao desemprego até ao sofrimento psicológico. As metas para sua redução estão retratadas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 10,
Nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cada um representa um problema em níveis global e local que os países devem enfrentar. Dentre eles, a desigualdade, que está no objetivo 10, é tratada como um tema estratégico para eliminação da pobreza. Ele necessita de soluções integradas para reduzir a desigualdade socioeconômica e o combate a todas as formas de discriminação. Esta meta, assim como todas as outras, não trata especificamente do racismo, mas salienta a inclusão social, econômica e política, independentemente de raça, com os diferentes setores convergindo em prol da igualdade de oportunidade para todos. Principalmente para as pessoas excluídas e à margem do desenvolvimento.
Na última Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, organizada pela ONU em Durban (2001), o Brasil foi a maior delegação externa, com participantes dos movimentos negros e indígenas. Teve atuação relevante nas manifestações e nas comissões de trabalho, com destaque para o movimento de mulheres negras.
Racismo, sexismo e sequelas emocionais
As mulheres negras incluíram na pauta os sofrimentos psicológicos vividos com o racismo e sexismo, que geram sequelas emocionais, baixa autoestima e prejuízo na saúde mental, o que foi denominado como “asfixia social”. Os danos vão desde o menor índice de matrimônio, expectativa de vida cinco anos a menos do que as mulheres brancas e, acima de tudo, as mulheres negras estão destinadas às ocupações de menor prestígio e remuneração. Essa realidade, por sua vez, também afeta o lado emocional e alimenta um círculo vicioso.
Para atuar no combate à desigualdade racial, a ONU proclamou a Década Internacional dos Afrodescendentes, 2015 – 2024 (ONU, 2015). Os Estados partes se comprometem a proibir e eliminar todas as formas de discriminação racial e garantir, entre outros temas, o direito ao trabalho, à livre escolha, a condições equivalentes e satisfatórias, à proteção contra o desemprego, a um salário igual, e uma remuneração equitativa e satisfatória.
Em 2018, a Revista Retratos do IBGE publicou o estudo “IBGE Mostra as Cores da Desigualdade”. A reportagem aponta que algumas ferramentas da estatística, como o índice de Gine, podem ser utilizadas para medir as desigualdades no Brasil e acompanhar as metas do ODS 10, principalmente a relacionada à renda. Na realidade brasileira, a desigualdade tem diversas vias, são elas: a desigualdade de renda, de oportunidade, no mercado de trabalho e o estigma de não se sentir aceito em um determinado local. A situação socioeconômica dos negros tem níveis muito baixos quando comparadas com a população branca. Sobre o mercado de trabalho o estudo sugere que o “Brasil está muito longe de se tornar uma democracia racial”.
Efeitos devastadores do desemprego
O desemprego tem efeitos devastadores, para além da perda dos ganhos financeiros, na vida do indivíduo. Se o aspecto financeiro fosse o único, um auxílio desemprego (programas sociais) resolveria o problema. Mas ele afeta a saúde física e psicológica; traz a sensação de desmotivação; acarreta a perda de confiança e sensação de inutilidade, incapacidade de produzir e ser útil para a sociedade; desequilibra a vida familiar e contribui para exclusão social e os conflitos raciais. Para os negros, esta situação é ainda mais devastadora, pelo histórico da escravidão e o racismo.Este grupo já carrega o fardo da desigualdade em vários aspectos sociais pela cor da sua pele e fenótipo, que não podem ser escondidos ou negados.
O negro ainda é visto como sinônimo de pobreza financeira e intelectual, desde as pesquisas de Neuza Santos nos anos 80, até os dias atuais com Cristina Junqueira, a sócia do Nubank, que participou de um programa de entrevistas Roda Viva. Ao falar sobre a dificuldade de contratar negros para ocupar posições estratégicas na empresa, relatou que “não dá para nivelar por baixo”.
O racismo opera através da segregação, culpabilização e descrença, o que gera no indivíduo um sentimento de menos valia, incapacidade e dependência. Esses sentimentos fazem com que o sujeito tenha dificuldades variadas de se colocar no mundo de forma diferenciada daquilo que se espera dele, pois o que a sociedade espera deste grupo é que esteja no lugar subalternizado, privados de sua liberdade e de ser o que deseja. Esperam que sejam dominados sem resistência.
O negro precisa “se impor”
Diante desta realidade o negro precisa “se impor”, como descreveu Neuza Santos. Essa postura de defesa contra os ataques constantes que chegam através da discriminação e preconceito racial, é um suporte de proteção do eu, é a exigência de que seus valores, seu conhecimento, sejam respeitados, é a urgência por igualdade de oportunidade, por escuta e fala. O negro ainda carrega a representação de si como alguém que precisa provar que é bom, “ser mais”, caso queira ascender socioeconomicamente.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), em parceria com os Conselhos Regionais, elaborou e apresentou à categoria e à sociedade um documento intitulado “Relações Raciais: Referências Técnicas para a Prática do Psicólogo” (2017). O documento tem como objetivo orientar o trabalho do profissional de psicologia nas três dimensões do racismo: Institucional; Interpessoal e Pessoal. No documento o CFP descreve a construção do racismo e assume o compromisso de combatê-lo. O racismo tem “sido uma ideologia que opera poderosamente na sociedade como motor de desigualdades que engendram as precárias condições de existência do povo negro”, configurando-se como uma grave violência estrutural e institucional presente na sociedade brasileira (CFP, 2017, 6).
Os problemas psicológicos gerados pela desigualdade racial, tendem a se agravar com a pandemia do Covid-19, ao levar insegurança e instabilidade com relação a proteção social. A OMS fez um estudo sobre os transtornos mentais nos países do continente americano e o Brasil tem o maior número de pessoas ansiosas, além disso, os brasileiros convivem por mais tempo com os prejuízos gerados pelos transtornos psicológicos. O site de pesquisa do Google também registrou um crescimento das buscas relacionadas a termos sobre saúde mental. Houve um aumento de 98% em 2020 em comparação à média dos dez anos anteriores. Entre os mais procurados estão os relacionados a depressão e ansiedade – como lidar?
O sofrimento, auto cuidado e qualidade de vida
Além da insegurança e desamparo diante do enfraquecimento do aparato social, do desemprego, da preocupação em garantir as necessidades básicas, a dinâmica atual requer uma urgência de resposta, perfeição nas tarefas, informações constantes que chegam em tempo real. As pessoas têm que dar conta da vida pessoal, social, profissional e do ativismo. Juntando a isso, uma enxurrada de lives e reuniões. Muitas vezes as pessoas se sentem impotentes, frustradas diante de tanta pressão e os sintomas aparecem como um pedido de socorro.
O sofrimento é individual, singular, mas é atravessado pela dinâmica social. Entender a situação socioeconômica e como o racismo opera na sociedade, principalmente no mercado de trabalho, contribui com subsídios para a escuta terapêutica do sofrimento trazido, para separação do que é fantasia e realidade. O tratamento, entre outros elementos, conta com o autoconhecimento, desenvolvimento do sujeito e da sua potência para que ele possa exercer sua liberdade e não se aprisionar no que a sociedade e o mercado esperam dele, que é o lugar subalternizado. Fortalecê-lo para vencer as barreiras impostas e dentro dos desdobramentos sociais alcançar suas realizações. Cuidar das emoções através da fala é autocuidado e contribui com a melhora na qualidade de vida, nos relacionamentos pessoal, social e profissional.
Até o mundo parou, e mesmo diante das urgências para suprir as necessidades básicas, está tudo bem se você precisar parar e cuidar das suas emoções, dos seus conflitos, durante uma hora, uma vez por semana.
*Sideise Bernardes Eloi é psicóloga clínica, pesquisadora e mestre em desenvolvimento sustentável. Atua em: psicoterapia clínica; orientação, desenvolvimento profissional e relações de trabalho; projetos sociais; programas de igualdade racial.
Referências:
- Esta reflexão é parte da Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Sustentável da autora: Desigualdade Racial no Mercado de Trabalho à Luz dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, PPGPDS – UFRRJ, 2020.
- CARNEIRO, Sueli. A Batalha de Durban. Geledés/Instituto da Mulher Negra. Revista de Estudos Feminista. Ano 10, 1º semestre, 2002, p. 209-214
- CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA – CFP. 2017. Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de psicólogas/os. Brasília: CFP, 2017.
- INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. IBGE Mostra as
- Cores da Desigualdade. Revista Retratos, 2018.
- SACHS, Ignacy. Desenvolvimento: includente, sustentável, sustentável – Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
- SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta; revisão tpecnica Ricardo Doninelli Mendes – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
- SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro. Ed. Graal, 1983.
- ZAMORA, Maria Helena Rodrigues. Desigualdade Racial, Racismo e seus Efeitos. Factual: Revista de Psicologia. Vol. 24 nº 3. Rio de Janeiro. Set. /dez. 2012.
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