Com os pés no terreiro Áurea Martins lança álbum “Senhora das Folhas”
Por Na Caixa de CD* – Redação – redação@negrxs50mais.com.br
Uma das grandes vozes femininas brasileiras, Áurea Martins se veste de folhas e saberes das rezadeiras, curandeiras e benzedeiras do Brasil, mulheres-matrizes fundamentais no esgarçado tecido social de um país profundo. Já disponível nas plataformas digitais, o álbum “Senhora das Folhas” é uma visita da cantora à sua ancestralidade. Conhecida intérprete de sambas-canção (a artista que marcou sua carreira como crooner em casas noturnas cariocas nos anos 1960 e 70), Áurea pôs os pés no terreiro e experimenta ritmos do universo afro-indígena, tão intenso e tão brasileiro. A veterana cantora faz o show de lançamento desta trabalho singular em sua trajetória nesta terça-feira (5), a partir das 20h, no Teatro Prudential.
Os cantores Moyseis Marques e André Gabeh, que participam do disco, são os convidados de Áurea, que será acompanhada por músicos de primeira grandeza: Lui Coimbra (direção musical, violoncelo, violões, rabeca e charango andino), Fred Ferreira (violas e guitarras), Marcos Suzano (pandeiro e percussões) e Pedro Aune (contrabaixo acústico e tuba).
Contemplado pelo edital Natura Musical e distribuído pela Biscoito Fino, “Senhora das Folhas” reúne 11 canções capazes de transformar a artista numa legítima porta-voz da essência feminina que acumulou e preservou tantos saberes séculos a fio. No repertório, incelenças do sertão de Minas Gerais e bendito medieval ganham roupagem luxuosa e camerística que une viola caipira, violoncelo e viola da gamba. Esses se unem a canções ultrajovens como “A Rezadeira” do rapper Projota e “Ponto das Caboclas de Camila Costa”. Também a um canto do povo Parakanã e um poema da etnia Macuxi. Além de sambas de lá do recôncavo e daqui do Rio de Janeiro, compondo um disco surpreendente e contemporâneo, reverente e iconoclasta, que tece como num bordado o diálogo entre os imaginários urbano e rural do país.
Voz de refinamento curtido aos 82 anos
Foi como cantora da noite que Áurea construiu o refinamento curtido de sua voz. Vê-la encarnada agora, aos 82 anos, como sacerdotisa da floresta, benzedeira, ialorixá, anciã indígena, tia da comunidade, ao longo das 11 faixas deste álbum, é revelador. Nos apresenta uma face de sua alma até então oculta — para nós e para a própria Áurea.
Seu canto em “Senhora das folhas” soa novo em folha por nos revelar com nitidez sua essência. É atestado dos tempos, ventos e folhas que cabem na voz da artista.
Áurea Martins nos conta que o universo das rezadeiras reside em sua memória na figura de dona Francelina, sua avó, senhora centenária que a rezava (“fui rezada por folha”) quando ela era criança em Campo Grande, bairro carioca onde nasceu e cresceu e para onde pretende voltar um dia. Lembra Justina, que sucedeu Vovó Francelina na função — e depois foi sucedida por Tia Zélia, que ensinou Áurea a ler e a escrever. É esta matrilinearidade que atravessa seu canto em todo o álbum.
Projeto lança luz sobre saberes populares femininos
A cantora evoca essas memórias na sala de sua casa, no Catete, que assume ares de microcosmo deste universo tão amplo: Santo Antônio no altar; vaso com espada de São Jorge à porta; numa banqueta, apoiados lado a lado, os livros “Escravidão: volume II”, de Laurentino Gomes, e “Plantas medicinais”; e na parede retratos de Ghandi e Mokiti Okada, fundador da Igreja Messiânica, da qual ela é fiel.
O projeto “Senhora das Folhas” nasceu do desejo de Renata Grecco, idealizadora e diretora artística do álbum, de lançar luz sobre este recorte da teia invisível de saberes populares tradicionais femininos, que atravessa o Brasil. “É uma sororidade silenciosa”, define. “Uma teia de afetos e fazeres que, no Brasil profundo, nos lugares onde pouco chega o poder público, ajuda a manter coeso o frágil tecido social. São mulheres que se dedicam ao cuidar da comunidade, das plantas, do que nasce e precisa ser protegido, do que morre e precisa renascer. De qualquer um que chegue em dores às suas portas. Exercem seus dons de maneira gratuita e graciosa. São mulheres-matriz. Avós, guardiãs. Pontes tangíveis entre o visível e o invisível. Foi guiada por esse olhar que comecei a pesquisar e definir o repertório”, explica.
Renata destaca que a parceria do Natura Musical foi fundamental para que o projeto fosse executado exatamente da forma como foi planejado. “Somos muito gratos também à Biscoito Fino também, que foi casa e acolhimento para o disco”, acrescenta.
Uma vida de reinvenções
Lui Coimbra, que assina a produção fonográfica e também a direção musical de “Senhora das Folhas”, construiu a sonoridade do álbum com uma ideia central em mente. “Parti da voz de Áurea Martins, sempre. Mesmo ela nunca tendo cantado esse tipo de repertório, era esse o norte”, conta o arranjador, que alcançou assim uma sonoridade refinada e enraizada como o canto de Áurea. Para tanto usou de programações eletrônicas a viola da gamba, mas sem perder de vista a essência de cada uma das canções.
A vida toda tive que me reinventar. A volta ao mundo em 80 dias é para os fracos, a volta ao mundo é em 80 lives!” brinca a cantora, ciente de que seu tempo de colher é hoje. “Não queríamos um disco apenas de resgate, de registro de campo. Meu jeito de pensar música é esse, honrando e reverenciando a tradição, mas sem engessá-la, o ritual e o disco são lugares diferentes”, argumenta o produtor.
Ouça o disco:
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